quinta-feira, 16 de abril de 2009
Um Eremita no Himalaia
Fonte: Paul Brunton,
Um Eremita no Himalaia, Ed. Pensamento
Ultimamente, minhas excursões à quietude produziram em mim um sentimento de maior contato com o meio ambiente. Como disse o poeta Shelley, sinto-me "unificado com a natureza". Sentado à beira do meu rochedo, munido de toda a paciência do mundo, deixando que a beleza e a serenidade da vizinhança penetrem em mim, começo a sentir-me, eu próprio, como uma parte da tranqüila paisagem. Estou absorvendo na minha natureza a quietude do Himalaia. Meu corpo parece despontar da terra pedregosa e escura como qualquer pequena árvore. Agacho-me ao solo, enraizado como o cedro à minha frente. A vida que pulsa nas minhas veias parece ser a mesma que corre na seiva das plantas ao meu redor. Até mesmo a sólida montanha deixou de ser uma simples massa de rocha cristalina, para transformar-se numa formação viva obedecendo a determinadas leis, da mesma forma pela qual a minha carne obedece a essas leis.
E, à medida que esse espírito unificador penetra mais e mais em mim, um benfazejo sentimento de bem-estar parece ser o resultado. Eu e todas estas árvores amigas, esta terra amável, estes picos brancos e reluzentes, estamos unidos num só organismo vivo e o todo, positivamente, é bom no seu íntimo. O universo não é morto, porém vivo; não é maléfico, porém benéfico; não é uma casca oca, mas o corpo gigantesco de um Grande Cérebro. Sinto pena dos materialistas que, de forma muito honesta porém dispondo de poucos dados, acham que a morte é o rei do mundo e o Demônio mora no íntimo das coisas. Se lhes fosse possível calar seus cérebros superativos e enquadrar-se na personalidade panorâmica da Natureza, eles descobririam o quanto estão errados.
No entanto, com as mais recentes descobertas dos cientistas de que dispomos, apenas os tolos e sectários poderão defender as teses do materialismo. A forma misteriosa pela qual este crescente sentimento de unidade mescla-se com um sentimento de completa bondade vale ser assinalada. O sentimento de unidade não se deve a qualquer esforço da minha parte; pelo contrário, vem-me não sei de onde. A harmonia vai surgindo gradualmente e atravessa-me o ser como música. Uma ternura infinita se apossa de mim, aplacando o duro cinismo que uma reiterada experiência da ingratidão e desonestidade humanas gravou fundamente no meu temperamento. Sinto a bondade fundamental da Natureza, a despeito da sua aparente fachada de ferocidade. Assim como os sons de todos os instrumentos de uma orquestra afinada, todas as coisas e todas as pessoas parecem entrar em doce relacionamento, que subsiste no coração da Grande Mãe.
Começo a compreender por que meu venerável Mestre não me sugere nenhum tipo especial de meditação e não me fornece nenhuma fórmula mística para ser ponderada e destrinçada. Ele não deseja que eu realize qualquer esforço no sentido de atingir uma posição mais elevada, quer apenas que as coisas corram naturalmente. Ele não me exibe um quadro daquilo em que me devo transformar, mas diz apenas, sê! Em suma, trata-se de não fazer nada a fim de permitir que algo seja feito comigo.
Nós, humanos, nos tornamos tão importantes e orgulhosos aos nossos próprios olhos que não nos ocorre que a Grande Mãe, que nos gera tão pacientemente no seu seio, nos alimenta com tanta abundância de alimentos e nos chama de volta quando estamos suficientemente cansados, tem um objetivo próprio que deseja conseguir em nós, desde que lhe permitamos. Nós organizamos nossos planos e projetos, nós decidimos aquilo que queremos da vida e nós pensamos, lutamos e até mesmo padecemos em nossos esforços para obter a satisfação de nossos desejos.
Se, porém, dedicássemos uma quarta parte do nosso tempo a suspender os nossos esforços e deixar tranqüilamente que o cérebro da Natureza penetrasse no nosso, poderíamos proceder a uma sábia revisão do rol das coisas que desejamos e, ao mesmo tempo, garantir a ajuda da Natureza na obtenção dessas coisas.
O mundo não passa de um grande hotel, onde a Mãe Natureza nos aloja e alimenta, paga a nossa conta e depois segue em frente. Pois a Natureza tem um desígnio para cada um de nós e apenas desistindo durante algum tempo do contínuo exercício das nossas vontades poderemos nos familiarizar com tais propósitos. Se, no entanto, agirmos assim, talvez constatemos, surpreendidos, que ela também tem uma forma de chegar aos seus fins, silenciosa porém eficazmente, diante de nossos olhos, desde que a ajudemos despindo-nos do nosso egoísmo. Então os desígnios da Natureza e os nossos tornar-se-ão um só. As ambições mudar-se-ão em aspirações e as coisas que outrora desejávamos em nosso próprio benefício serão alcançadas quase sem esforço, através de nós para o benefício de outros também. Cooperar por esta forma com a Mãe Natureza é cessar de carregar as cruzes da vida e deixar que ela faça esse trabalho por nós; tudo se torna fácil, até mesmo miraculoso.
já tinha visto essas verdades antes, mas agora, no meu refúgio montês e mais intimamente vinculado à Mãe, vejo-as com espantosa claridade.
Um poeta disse que a Natureza é a roupagem de Deus. Sim, mas para mim a Natureza não pode ser distinguida de Deus. Sei que quando estou reverenciando a Natureza não me estou entregando a um solilóquio; alguém acolhe a minha reverência. Se Deus é o Grande Arquiteto então a Natureza é o Mestre de Obras do universo, no sistema Maçônico do nosso mundo.
Meu Mestre explica a inutilidade de qualquer esforço separativo, através de um sorriso significativo. E pergunta-me: — Que pensarias tu de um homem que entrasse num compartimento de um vagão de estrada de ferro com uma mala na cabeça, depois se acomodasse num banco e se negasse a colocar a mala no chão? As pessoas, no entanto, negam-se a entregar a Deus os espinhos das suas existências, insistindo em carregá-los por si próprias, na ilusão de que ninguém mais poderá fazê-lo, assim como o homem do trem estava na ilusão de que não era o trem mas ele próprio quem iria transportar as malas. Assim, também, Deus sustenta a Terra, sustenta-nos a nós e aos nossos fardos, levando tudo Consigo.
***
Certa tarde, enquanto estávamos sentados nas proximidades da margem de um pequeno regato, o Iogue Pranavananda começou a falar acerca do seu professor, o Swami Jnanananda:
— Meu Mestre pertence a uma rica família que mora em Andhra, na zona nordeste de Madras. Com cerca de dezessete anos de idade ele teve um sonho no qual apareceu-lhe uma Grande Alma e pediu-lhe que deixasse o lar, mas tal pedido gerou um conflito íntimo no seu ser e ele não obedeceu de pronto. A Grande Alma apareceu-lhe novamente num segundo sonho, repetindo o pedido, mas desta vez o conflito íntimo tornou-se mais agudo do que nunca, sem que ele pudesse definir-se entre o seu desejo de obedecer e a sua esposa. Uma vez mais ele vacilou, faltando-lhe coragem para romper os laços de família. No entanto, A Grande Alma veio ter com ele uma terceira vez, tocou-o num sonho, e deu-lhe então forças para obedecer. Assim sendo, ele deixou o lar e, renunciando ao mundo, desapareceu em procura da verdade. Viajou para o norte e para o oeste em procura de um professor. Alguns anos mais tarde, ao encontrar seu mestre, este último disse-lhe simplesmente: — A meta espiritual já está em tuas mãos.
"Ele percebeu o quanto era avançado espiritualmente o jovem. E isso foi comprovado, pois logo após, o meu reverendo Mestre entrou no estado mais elevado de transe espiritual, do qual emergiu um novo homem.
"No entanto, meu professor queria tornar a sua realização perfeita, firme e sem solução de continuidade, de modo que, para esse fim, veio para o Estado de Tehri e foi viver solitário em Gangotri, em 1923. Lá estando teve uma experiência que serviu para provar a força da sua conquista espiritual. Viu-se um dia frente a frente com um enorme tigre, o qual não fez nenhuma tentativa de atacá-lo, mas aquietou-se nas patas traseiras e quedou-se a observá-lo, durante algum tempo, antes de embrenhar-se na mata e desaparecer.
"Meu Mestre permaneceu nas vizinhanças durante todo um inverno, quando nenhuma outra alma teria ousado fazê-lo por causa da neve, de três metros de altura, que sepultava toda a região. Durante toda a estação hibernal não era possível obter ali qualquer espécie de comida, mas as autoridades de Tehri conseguiram que os funcionários governamentais mais próximos enviassem suprimentos de quando em quando. Mas o que é de pasmar é que Swami Jnanananda insistiu em permanecer quase inteiramente nu durante toda a sua estada, não usando senão uma sumária tanga. Jnanananda vivia numa caverna aberta, sem porta e sem lareira. Quando lhe perguntavam como podia suportar nu tanto frio, ele dizia: — Diante da minha gruta em Gangotri eu costumava sentar-me numa pedra para meditar e entrar em Samadhi. Habituei-me às inclemências do tempo sem maiores dificuldades. Um dia senti necessidade de atirar fora todas -as minhas roupas, sem qualquer razão aparente. Senti que alguma força interior me instava. Essa força e o nome do Senhor tornaram-me totalmente indiferente ao frio, que eu não sentia. —Imagine-o vivendo naquela região desolada e bravia, cercado apenas de neve e gelo, com grandes avalanchas desabando, de tempos em tempos, das encostas e ameaçando soterrá-lo. Sua única companhia era o silencioso Himalaia, os animais selvagens que por vezes se arriscavam a passar por ali e uns poucos habitantes das montanhas. Hoje, se perguntarmos ao homem que costumava trazer comida ao Swami, descobriremos o quanto ele aprendeu a amar essa grande alma, pois seus olhos se iluminam ao falar nela e seu coração se enche de júbilo. . . "
De repente, Pranavananda pára de falar. Seus olhos quase se fecham. Sua respiração torna-se agitada e estertorante. Imagino que vai ter um ataque. Mas não, logo ele se acalma e começa, através de estágios tranqüilos, a entrar em transe. Seu corpo mantém-se sereno e imóvel, a não ser pelo ligeiro movimento de erguer e baixar os ombros que acompanha a respiração.
Então dou-me conta de que uma modificação vital se operou na atmosfera. A misteriosa quietude que anuncia a chegada de um estado mais elevado de consciência ou de um ser superior invade o ar. Percebo de pronto que algo importante aconteceu, de modo que faço uma meia volta a fim de olhar de frente o Togue, sento-me no chão; tranco as pernas em postura de meditação e tento ajustar-me mentalmente àquilo que estava por vir.
Perante o olho interior, a imaginação, a epífise — o nome pouco me importa — fulgura um rosto de homem, barbado, usando óculos e com um nariz largo. Um sorriso amigo lhe baila nos lábios. Recebo um olhar penetrante e, logo depois, uma mensagem.
Compreendo.
É o Swami Jnanananda. Usando dos poderes misteriosos que têm os homens da sua classe, ele projetou sua mente, sua alma, seu corpo sutil — uma vez mais o nome pouco me importa — sobre seu discípulo e eclipsou-o. No momento, os dois são espiritualmente unos, seus corações se mesclam. Este processo de autotransferência poderá surpreender o mundo, mas significa, em menor escala, a mesma coisa que Jesus quis dizer ao proclamar: — Eu e meu Pai somos um só. — Este é o verdadeiro significado da condição de discípulo, seu segredo mais íntimo. Não é à toa que as tradições yogues da índia declaram que render-se ao Mestre é uma condição essencial, mas os tolos sempre puseram esta verdade no plano material e não conseguiram compreendê-la. Tudo aquilo que um verdadeiro Mestre exige do seu discípulo é uma íntima identificação consigo e não a entrega de bens materiais. Esta última é a marca registrada da charlatanice. A primeira é o atalho que elimina todas as longas e laboriosas disciplinas impostas por caminhos diferentes.
Durante meia hora nos mantivemos em completo silêncio, o discípulo eclipsado e eu. Procuro colocar-me em harmonia com as vibrações mais elevadas que agora dominam o ambiente. O mestre fala-me, sem se valer do uso de palavras, sem discursar, e eu me torno sensível e receptivo tanto quanto posso. O mundo exterior talvez não veja senão dois homens calados, um com os olhos semicerrados, outro com os olhos bem arregalados. Mas eu vejo uma presença sublime, cuja visita ergue-me provisoriamente acima do meu pequenino ego.
Finalmente, meu companheiro retorna lentamente à sua condição normal, vira a cabeça e depois toca os olhos com o lenço. Continuamos sentados, não mais frente a frente, porém ambos imersos no mais absoluto mutismo. Mais tarde, quando nos levantamos e caminhamos juntos pelo vale, falamos acerca de outros assuntos e não tocamos naquele. A experiência vivida não constitui um tema fácil para conversação e deixamos que ela passasse sem ser mencionada.
De volta ao bangalô, pondero no breve esboço de vida do seu mestre que o meu amigo traçou para mim. Imagino-o em Gangotri, sentado-se para meditar, com talvez uma pele de corça estendida sobre um banco de gelo; a neve caindo por toda parte, quase soterrando-o; e os ventos cortantes uivando em torno. Como terá podido ele resistir à tremenda dureza da vida num ermo tão entorpecente? Como pôde suportar todo um inverno himalaio nas alturas de Gangotri, três mil e quinhentos metros no nível do templo, ultrapassada apenas pelo pico nevado que tem uma altitude de sete mil metros? Como sobreviveu a tudo, nu e sem lareira, e emergiu são e salvo da sua odisséia? (O médico oficial do Estado de Tehri, Dr. D. N. Nautyal, examinou Swami Jnanananda depois da sua volta e constatou que o seu pulso bate agora num ritmo de 30 pulsações inferior ao normal, segundo me declarou um funcionário do governo.)
O corpo obedece a determinadas leis naturais e qualquer outro homem que tentasse viver nu em condições semelhantes pereceria inevitavelmente. No entanto, Jnanananda parece haver interrompido o funcionamento de tais leis por um simples ato de sua vontade.
Qual é a explicação?
Encontro alguma indicação a respeito, parte em dois antigos volumes hindus e parte nas declarações de um asceta tibetano que, conheci em Buda-Gaya há alguns anos.
Um dos volumes é o Hatha Yoga Pradipika, um texto sânscrito para uso daqueles que estão praticando o Controle do Corpo.
Descreve-se ali um rigoroso e difícil sistema de autodisciplina, envolvendo grandes esforços da vontade e prometendo por fim aos seguidores a capacidade de resistir a quaisquer mudanças de temperatura. O outro livro é o famoso Bhagavad Gita, um manual de Ioga e filosofia, que aconselha o praticante a recolher sua mente tão profundamente na direção do seu centro espiritual a ponto de esquecer as sensações físicas. "Coloque-se além dos opostos calor e frio", são as palavras ali impressas.
Dos tibetanos aprendi que entre os avançados ascetas do reino dos lamas existem numerosos que se especializam em gerar, por meio de determinados exercícios físicos e práticas mentais, um calor interno, uma sutil força ígnea a que chamam tomo. Nesses exercícios a respiração profunda se combina com esforços da vontade e da imaginação. Primeiro, canta-se uma invocação secreta a fim de receber o poder mágico requerido, a seguir o poder de visualização é conseguido e uma imagem subjetiva do fogo é produzida. Depois as chamas são avivadas, com o acompanhamento de respirações profundas, a partir da sua origem imaginária junto do órgão sexual e enviadas à cabeça. A teoria desses ascetas é que o fogo imaginário aquece o fluido sexual, o qual é a seguir distribuído pelas artérias e nervos através do corpo, por meio de outros exercícios. Por fim, o asceta entra num transe durante o qual permanece durante algum tempo com a mente focalizada na miragem do fogo por ele criada. Meu informante tibetano pretende que esta prática afugenta por completo qualquer sensação de frio do corpo e permite ao homem sentir uma agradável quentura, mesmo estando ele enfiado no mais rigoroso inverno. Na verdade, acrescentou, alguns ascetas sentam-se propositalmente em água gelada quando entregues à prática deste exercício.
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