Vivekananda - Bakti Yoga
Bakti-Yoga
Bakti-Yoga
Swami Vivekananda
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PREFÁCIO
O Hinduísmo, que é a religião mais completa do mundo, pela universalidade de sua estrutura ético-filosófica e amplitude de seu estrito de união e tolerância, oferece a seus adeptos quatro caminhos (Margas) fundamentais de libertação individual, mais conhecida entre os cristãos como salvação. São denominados Karma-marga, a caminho da ação ou das obras; Jnana-marga, o caminho do conhecimento; Bhakfi-marga, o caminho da devoção ou amor a Deus, e Dhyana-marga, o caminho da meditação, Marga também se aplica como sinônimo de Yoga, termo mais em voga no Ocidente, e mais generalizado na Índia para designar uma de suas seis escolas filosófica(4) fundada pelo famoso Rishi Patanjali.
Uma das características notáveis do Hinduísmo, e que geralmente se considera uma das principais responsáveis pela longa sobrevivência dessa religião milenar, é a ampla liberdade intelectual que outorga a seus adeptos em matéria de crença ou mesmo descrença numa Divindade Suprema, que todavia ali se considera imanente em toda a natureza. Nessa conformidade, o hinduísta tem plena liberdade de pensar, contanto que sua conduta seja ortodoxamente hinduísta em seus princípios fundamentais. Daí suas seis escolas filosóficas, das quais três baseadas no Espírito e três na Matéria, porém todas visando o aperfeiçoamento individual através da auto-realização. Daí os seus quatro Margas ou métodos individuais de auto-aperfeiçoamento. Daí também o seu sistema de castas, hoje anacrônico e quase obsoleto ali, porém que em passado remoto teve sua motivação, para efeito de educação, preparação e integração social. São as castas dosBrâmanes, os sacerdotes e instrutores; dos Kshatriyas, os militares e estadistas; os Vaishyas, os comerciantes e agricultores; e os Rudras, os servidores ou artesãos. Essa divisão ainda hoje subsiste em todo o mundo e em toda a sociedade, porém sem a rigidez de outrora. Swami Vivekananda, brilhante expoente da escola filosófica Vedanta, uma das seis e a mais elevada do sistema hindu, é um magnífico expositor da cultura hinduísta. E sabe fazê-lo com extraordinária maestria de quem vive e domina perfeitamente o assunto, e num estilo elegante, claro e enriquecido de ilustrações com exemplos os mais oportunos e sugestivos. Nesta obra ele expõe sinteticamente esses famosos quatro caminhos ou métodos de auto-aperfeiçoamento, numa linguagem ao alcance de todos, de sorte que todos possam estudá-los, e uns poucos, os mais práticos ou decididos, possam experimentá-los e adotar aquele que melhor lhes convenha, consoante sua natureza e tempo disponível.
Por certo os métodos não são iguais entre si, pois visam sobretudo a natureza do indivíduo, e suas necessidades e possibilidades. Os métodos do conhecimento e domínio da mente exigem mais estudos e meditação, ao passo que os métodos do serviço altruísta e amor a Deus requerem mais prática do que teoria. Os exercícios específicos de cada um deles variam, porém é a mesma a finalidade de todos eles: levar o estudante e o praticante a um estado de libertação que se lhe traduz em paz e felicidade como também o preparam e fortalecem para enfrentar os momentos mais cruciais de sua vida. Um ponto, porém, o autor procura tornar bem claro: é que se os métodos diferem, não divergem entre si, mas, antes, completam-se e auxiliam-se em alguns pontos e circunstâncias da vida E isso é muito lógico, pois não pode haver teoria eficaz sem a colaboração e comprovação da prática, nem prática inteligente se divorciada de estudos o meditação. Há, portanto, uma mútua interdependência, e se houver uma conjugação da teoria com a prática, os meios se tornarão mais fáceis e os resultados mais rápidos e seguros.
Tal é o escopo desta síntese, que é um real compêndio de auto-realização místico-filosófica posto a serviço dos que aspiram aprofundar a solução de seus problemas internos, e assim experimentar e estabelecer em si aquela "paz que ultrapassa o entendimento"", de que tanto nos têm falado os místicos e yogues.
Auto-realização através do amor a Deus
(Bhakti-Yoga)
A melhor definição dada à Bhakti-Yoga está talvez resumida no verso: "Que o amor que os faltos de
discernimento nutrem pelos fugazes objetos dos sentidos, jamais abandone este meu coração, que é o de
quem Te busca!"
Sabemos quão forte é o amor que os homens, nada conhecendo de melhor, têm pelos objetos dos sentidos,
como dinheiro, roupas, suas esposas, filhos, amigos, e propriedades. Como se agarram tremendamente a
todas essas coisas! Por isso, na prece acima, o sábio diz: "Terei um apego assim - esse tremendo
agarramento - mas somente em relação a TC.
Esse amor, quando dado a Deus, é chamado Bhakti. Bhakti não é destrutivo. Ensina que nenhuma das
faculdades que temos nos foi dada em vão, e que é através delas que encontramos o caminho natural para
a libertação. Bhakti não mata nossas tendências, não vai contra a natureza, mas só lhes dá uma direção
mais nobre e mais poderosa. Quando o mesmo amor dedicado aos objetos dos sentidos é dedicado a Deus,
esse amor se chama Bhakti. O principal é desejar Deus. Só quando nos saciamos de tudo que aqui existe é
que olhamos para o além, em busca de suprimento. Parai com os brinquedos infantis do mundo assim que
puderdes, e então notareis a necessidade de algo para além do mundo, e virá o primeiro passo na religião.
Há uma forma de religião que segue a moda. Minha amiga tem tal mobília em sua sala; é moda ter um vaso
japonês; portanto, ela precisa também ter um ainda que custe mil dólares. Da mesma maneira teremos uma
pequena religião, e freqüentaremos uma igreja. Bhakti não é para essas pessoas. Isso não é desejar.
Desejar é querer algo sem o qual não se pode viver., Desejamos respirar, desejamos alimento, desejamos
roupas. Sem isso não podemos viver. Quando um homem ama uma mulher neste mundo, há momentos em
que ele imagina não poder viver sem ela, embora isso seja um engano. Quando um marido morre, a esposa
pensa que não poderá viver sem ele, mas vive, apesar de tudo. Esse é o segredo da necessidade. Algo
sem o qual não se pode viver. Devemos ter esse algo, senão morreremos. Quando chegar a ocasião de
assim nos sentirmos em relação a Deus, ou, em outras palavras, desejarmos algo para além deste mundo
algo acima de todas as forças materiais, então poderemos tornar-nos bhaktas.
Primeira parte
Vemos, claramente, que Bhakti é uma série ou sucessão de esforços mentais para a compreensão da
religião, começando com o culto comum o terminando com uma intensidade suprema de amor por Ishvara
(Deus pessoal).
Bhakti-Yoga é uma procura real, autêntica, do Senhor, uma procura que começa, continua e termina amor.
Um simples momento da loucura do amor extremado a Deus nos traz a liberdade eterna. "Bhakti" - diz
Narada em sua explicação dos Aforismos Bhaktis - "é o intenso amor por Deus". "Quando um homem o
obtém, ama tudo, nada odeia, torna-se satisfeito para sempre." "Esse amor não pode ser reduzido a
qualquer benefício terreno" - porque enquanto houver um desejo mundano, essa espécie de amor não virá.
Bhakti é maior do que Karma-Yoga, maior do que Raia-Yoga, porque estas têm um objetivo em vista, ao
passo que Bhakti é sua própria fruição, seus próprios meios, e seu próprio fim."
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Não há, realmente, muita diferença entre conhecimento (jnana) e amor (bhakti), como às vezes se imagina.
Veremos, na continuação, que por fim ambos convergem e se encontram no mesmo ponto. Assim acontece
com Raja-Yoga, que, quando procurada como meio de libertação, e não (como, infelizmente, se converte,
com freqüência, em mãos de charlatães e vendedores de mistérios) como instrumento para iludir os
incautos, leva-nos também ao mesmo escopo.
A verdadeira e grande vantagem de Bhakti é ser o caminho mais fácil e mais natural para alcançar-se o
grande fim divino em vista. Sua grande desvantagem é que, em suas formas inferiores, com freqüência se
degenera em hediondo fanatismo. O grupo fanático entre o hinduísmo e o maometismo ou o cristianismo,
sempre tem sido recrutado quase que exclusivamente entre esses devotos das camadas mais baixas de
Bhakti. O apego exclusivo a um objeto amado, sem o que nenhum amor genuíno rode crescer, é, com muita
freqüência, também a causa da intolerância contra tudo quanto difere desse amor. Todas as mentes fracas
e não desenvolvidas, em todas as religiões e em todos os países, só têm uma forma de amar seu próprio
ideal, isto é, detestando todos os outros ideais. Aqui temos a explicação do fato do mesmo homem, tão
amorosamente apegado ao seu próprio ideal de Deus, tão devotado a seu próprio ideal de religião, tornar-se
UM fanático vociferante assim que vê ou ouve alguma coisa que não seja o seu ideal. Essa espécie de
amor é, de certa forma, igual ao instinto canino de guarda à propriedade de seu dono contra a invasão.
Acontece, apenas, que o instinto do cão é melhor do que a razão do homem, pois o cão jamais confunde
seu dono com um inimigo, seja qual for o trajo com que aquele se lhe apresente.
O fanático perde todo o poder de julgamento. As considerações pessoais lhe são, nesse caso, de tão
absorvente interesse que não lhe importa se o que um homem diz é certo ou errado, mas o que o preocupa
particularmente saber é quem o diz. O mesmo homem que é bom, benévolo, honesto e amoroso para os
que partilham de sua própria opinião, não hesitará em cometer as ações mais vis para com aqueles que
ficam fora do pálio de sua fraternidade religiosa.
Mas esse perigo existe apenas no estágio de Bhakti que é chamado preparatório. Quando o báta
amadurece e passa para a forma chamada a suprema, não há mais receio dessas hediondas manifestações
de fanatismo. A alma que é dominada por esta forma superior de Bhakti está demasiado próxima do Deus
do amor para se tornar um instrumento para a difusão do ódio.
Não é dado a todos nós sermos harmoniosos na construção de nosso caráter nesta vida. Não obstante,
sabemos que esse caráter é do tipo mais nobre, no qual todos os três - o conhecimento, o amor e a Raja-
Yoga - estão harmoniosamente fundidos. Três coisas são necessárias a um pássaro para poder voar: as
duas asas e a cauda, sendo esta como um leme para a direção. Inana é uma asa, Bhakti é a outra, e Raja-
Yoga é a cauda que nos mantêm em equilíbrio. Os que não podem seguir todas essas três formas de culto
reunidas em harmonia, e tomam, portanto, apenas Bhaki como seu caminho, precisam lembrar-se sempre
de que os ritos e cerimônias, embora absolutamente necessários para a alma em progresso, não têm outro
valor senão o de nos levar àquele estado em que sentimos o mais intenso amor por Deus.
Vemos claramente, portanto, que Bhaktí é uma série ou sucessão de esforços mentais para a realização
religiosa, começando no culto comum e terminando na suprema intensidade de amor por Ishvara (Deus
Pessoal).
Sempre se deve compreender que o Deus Pessoal cultuado pelo Máta não é separado ou diferente de
Brama. Tudo é Brama, o Único sem segundo. Contudo, como Unidade, ou Absoluto, Brama é uma
abstração excessiva para ser amado e cultuado. Assim, o bhakta escolhe um aspecto relativo de Brama,
isto é, Ishvara, o Governante Supremo. Para usar um símile: Brama é a argila ou a substância da qual uma
infinita variedade de artigos é moldada. Como argila, tais artigos são apenas um, mas formam diferentes
manifestações dela. Antes que cada um deles fosse feito, todos existiam potencialmente na argila, e, como
é natural, eram idênticos no que se refere à substância. Mas, uma vez formados, e enquanto a forma
permanece, são separados e diferentes. O rato de argila jamais pode tornar-se um elefante de argila,
porque, na qualidade de manifestações, somente a forma faz deles o que são, embora como argila informe
sejam apenas um. Ishvara é a mais alta manifestação da Realidade Absoluta, ou, em outras palavras, a
leitura mais alta do Absoluto que a mente humana pode fazer. A Criação é eterna, como eterno é Ishvara.
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Bhakti-Yoga, como já dissemos, se divide em duas formas: a suprema e a preparatória. Verificaremos,
conforme caminhemos, como, no estágio preparatório, ficamos, inevitavelmente, na necessidade de auxílios
concretos que nos ajudem a prosseguir. E, realmente, as partes mitológicas e simbólicas de todas as
religiões são decorações naturais que de início circundam a alma aspirante e a ajudam a tomar a direção de
Deus. Também é um fato significativo terem sido os gigantes espirituais produzidos apenas nos sistemas de
religião onde há exuberante riqueza de ritualismo e mitologia. As formas secas e fanáticas de religião, que
tentam despojá-la de tudo quanto é poético, de tudo quanto é belo e sublime, de tudo quanto oferece um
forte ponto de apoio à mente infantil que vai cambaleando em seu caminho para Deus - as formas que
tentam destruir os próprios paus de cumeeira do telhado espiritual, e em suas concepções ignaras e
supersticiosas da verdade tentam expulsar tudo quanto dá vida, tudo quanto fornece o material formador da
planta espiritual que viceja na alma humana - tais formas de religião bem depressa terão verificado que só
lhes restou uma casca vazia, moldura insatisfatória de palavras e sofismas, que talvez tenham ligeiro odor
de uma espécie de varredura social, ou do chamado espírito de reforma.
A vasta massa daqueles cuja religião é desse tipo, são materialistas conscientes ou inconscientes, sendo o
fim e a meta de suas vidas, aqui e no além o prazer, que, realmente, constitui para eles o alfa e o ômega da
vida humana. Para esses, trabalho como o de limpeza de imundícies, visando dar conforto material ao
homem, constitui a razão de ser, e a finalidade da existência humana. E quanto mais depressa os
seguidores dessa curiosa mistura de ignorância e fanatismo surgirem sob. suas cores verdadeiras, e se
reunirem, como merecem fazer, às fileiras dos ateus e materialistas, melhor será para o mundo. Uma grama
de prática de integridade e de auto-realização espiritual, ultrapassa em peso toneladas e toneladas de
palavreado frívolo e sentimentos disparatados. Mostrai-nos um, apenas um, gigantesco gênio espiritual que
tenha nascido de toda essa ressecada poeira de ignorância e fanatismo. Se não o podeis fazer, fechai
vossas bocas, abri as janelas de vossos corações à luz clara da verdade, e senti-vos como crianças aos pés
daqueles que sabem o de que estão falando - os sábios da India. Ouçamos, pois, atentamente, o que eles
dizem.
Segunda parte
Conquista a simpatia de todos, senta-te com todos, anota o nome de todos, dizei sim, sim mas mantém-te
firme em teu lugar.
Cada alma se destina ao aperfeiçoamento, e todos os seres, ao fim, atingirão o estado de perfeição. O que
quer que sejamos agora é o resultado de nossos atos e pensamentos no passado, e o que quer que
sejamos no futuro será o resultado do que pensamos e fazemos agora. Mas esta modelação de nossos
próprios destinos não nos impede de receber ajuda do exterior. Ainda mais, na vasta maioria dos casos, tal
ajuda é absolutamente necessária; quando vem, os poderes e possibilidades superiores da alma são
ativados, a vida espiritual é despertada, o crescimento é animado, e o homem se torna, por fim, santo e
perfeito.
Esse impulso para a frente não pode ser haurido nos livros. A alma só pode receber impulsos de outra alma,
e de nada mais. Podemos estudar os livros toda a nossa vida, podemos tornar-nos muito intelectuais, mas
ao fim verificaremos que não nos desenvolvemos absolutamente no sentido espiritual * Não é verdade que
uma ordem mais alta de desenvolvimento intelectual acompanhe sempre o desenvolvimento espiritual
proporcionado ao homem.- Estudando livros somos às vezes levados à ilusão de pensar que por eles
estamos sendo espiritualmente auxiliados. Mas, se analisarmos o efeito desses livros sobre nós, veremos
que, no máximo, é apenas o nosso intelecto o que tira proveito de tais estudos, e não o nosso espírito
interior. Essa inaptidão dos livros para acelerarem o crescimento espiritual é a razão pela qual, embora cada
um de nós possa falar maravilhosamente sobre assuntos espirituais, quando chega o momento da ação e
de viver a verdadeira vida espiritual, verificamos quão tremendas são nossas deficiências. Para ativar-nos o
espírito, o impulso deve vir-nos de uma outra alma.
A pessoa de cuja alma esse impulso vem, é chamada gurú, o mestre; e a pessoa a cuja alma o impulso é
dirigido, chama-se estudante. Para comunicar tal impulso a qualquer alma, em primeiro lugar, a alma da
qual ele procede deve possuir o poder de transmiti-lo, por assim dizer, a outros. Em segundo lugar, a alma à
qual é transmitido o impulso deve estar preparada para recebê-lo. A semente deve ser semente viva, e o
campo deve estar arado, preparado; quando ambas essas condições se realizam, tem lugar um
florescimento maravilhoso da genuína religião.
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Só esses são os verdadeiros mestres, e só esses são os verdadeiros estudantes, os verdadeiros aspirantes.
Todos os outros estão apenas brincando com a espiritualidade. Podem ter somente uma pequena
curiosidade despertada, somente uma pequena aspiração intelectual acesa neles, mas ainda permanecem
na ala externa do horizonte da religião. Há, não há dúvida, algum valor mesmo nisso, pois daí pode, no
correr do tempo, resultar um despertar da. real sede de religião, e, por uma lei misteriosa da natureza,
assim que o campo está preparado, a semente deve chegar, e chega. Assim que a alma deseja
ansiosamente ter religião, o transmissor da força religiosa deve aparecer, e aparece, para ajudar essa alma.
Quando o poder que atrai a luz da religião na alma do recipiendário é integral e forte, o poder que responde
a essa atração e lhe envia a luz, surge como coisa natural.
Há, entretanto, certos perigos no caminho. Há, por exemplo, o perigo para a alma recipiendária, de
confundir suas emoções momentâneas com o autêntico desejo de religião. Podemos estudar isso em nós
mesmos. Muitas vezes, em nossas vidas morre alguém que amávamos. Recebemos um golpe, sentimos
que o mundo está-nos fugindo entre os dedos, que desejamos algo mais seguro e mais alto, e que devemos
nos tornar religiosos. Em poucos dias aquela onda de sentimentos passa, e ficamos encalhados no mesmo
ponto em que estávamos antes. Todos nós confundimos, com freqüência, tais impulsos com a verdadeira
sede de religião, mas, enquanto essas emoções momentâneas forem assim confundidas, o anseio autêntico
e contínuo de religião não nos virá e não encontraremos o transmissor de espiritualidade. Assim, sempre
que estejamos tentados a nos queixar de que nossa pesquisa em relação à verdade que tanto desejamos
está-se revelando vã, nosso primeiro dever, em lugar de nos queixarmos, deve ser olhar dentro de nossas
almas e verificar se o anseio do coração é autêntico. Então, na imensa maioria dos casos, descobriremos
que não estamos preparados para receber a verdade, que não existe aquela sede genuína de
espiritualidade.
Há ainda perigos maiores com referência ao transmissor, o gurú. Há muitos que, embora ainda imersos na
ignorância, imaginam, no orgulho de seus corações, que sabem tudo, e não só não se detêm aí, mas
oferecem-se para levar outros em seus ombros. E assim, cegos conduzindo cegos, tombam juntos no fosso.
O mundo está cheio dessas pessoas. Todos querem ser mestres. Todo o mendigo quer fazer doações de
um milhão de dólares! Assim como esses mendigos são ridículos, ridículos são esses mestres.
Como podemos conhecer um mestre, então? O Sol não precisa de tocha que o torne visível. Não
precisamos acender uma vela para contemplá-lo. Quando o Sol se levanta, tornamo-nos instintivamente
conscientes do fato, e quando um mestre de homens vem-nos ajudar, a alma saberá instintivamente que a
verda. de já começou a brilhar sobre ela. A verdade apoia-se em seu próprio testemunho, e não requer
qualquer outro para provar que é verdade. É auto-refulgente. Penetra nos mais recônditos escaninhos de
nossa natureza, e à sua presença todo o universo se ergue e diz: "Esta é a verdade". Os mestres cuja
sabedoria e verdade brilham como a luz do Sol, são os maiores que o mundo conheceu, e vêem-se
cultuados como Deus pela maioria da humanidade. Mas também poderemos obter auxílio de outros
relativamente menores. Apenas, não possuímos bastante intuição para julgar com propriedade o homem do
qual recebemos ensinamento e orientação. Assim, precisa haver determinados testes, certas condições que
o instrutor deve satisfazer, o mesmo se dando com o aprendiz.
As condições necessárias para o aprendiz são pureza, sede real de conhecimento, e perseverança.
No que se refere ao instrutor, devemos verificar se ele conhece o espírito das escrituras. Todo o mundo lê a
Bíblia, os Vedas, o Corão, mas são apenas palavras, sintaxe, etimologia, filologia - os ossos secos da
religião. O instrutor que usa palavra demais e permite que a mente seja distraída pela força das palavras,
perde o espírito. Os que empregam tais métodos para ensinar religião a outros, estão apenas desejosos de
exibir sua erudição, para que o mundo venha louvá-los como grandes eruditos. Verificareis que nem um só
dos grandes instrutores do mundo jamais entrou nessas variadas explanações dos textos. Com eles não
houve tentativa de "torturar com os textos”, nem o eterno jogo quanto à significação das palavras e suas
raízes. Ainda assim, ensinaram nobremente, enquanto outros que nada têm a ensinar tomaram às vezes
uma palavra, e escreveram um livro em três volumes sobre a sua origem, sobre o homem que a usou em
primeiro lugar, sobre o que esse homem costumava comer, quanto tempo dormia, e assim por diante.
Bhagavan Ramakrishna costumava contar a história de alguns homens que foram a um pomar de
mangueiras e se ocuparam em contar as folhas, os rebentos, os galhos, examinando sua cor, comparando
seu tamanho, e anotando tudo muito cuidadosamente. Depois, meteram-se em erudita discussão sobre
cada um daqueles tópicos, que, indubitavelmente, lhes pareciam altamente interessantes. Mas um deles,
mais sensato do que os demais, não fez caso algum daquilo, e começou a comer uma manga. Não se
revelou ele um sábio?
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A segunda condição necessária para o instrutor é a impecabilidade. Ele deve ser perfeitamente puro, e só
então suas palavras terão valia, porque só então ele é o verdadeiro transmissor. Que poderá ele transmitir
se não tiver em si poder espiritual? Deve haver a valiosa vibração da espiritualidade na mente do instrutor,
de forma que possa ser simpaticamente dirigida à mente do aluno. A função do instrutor é realmente um
caso de transferência de algo, e não mero estímulo das faculdades intelectuais, ou de outras que existam
no aprendiz. Algo real e apreciável como influência, vem do instrutor e vai para o aprendiz. Portanto, o
instrutor deve ser puro.
A terceira condição relaciona-se com o motivo. O instrutor não deve ensinar por qualquer motivo ulterior,
egoístico - por dinheiro, nome, ou fama. Seu trabalho deve ser simplesmente oriundo do amor puro pela
humanidade em conjunto. O único meio através do qual a força espiritual pode ser transmitida é o amor.
Qualquer motivo egoístico, tal como o desejo de ganho ou de nome, destruirá imediatamente esse método
de comunicação. Deus é amor, e só quem conheceu Deus como amor, pode ser instrutor das coisas divinas
e de Deus aos homens.
Quando virdes que em. vosso instrutor tais condições são integralmente preenchidas, estais seguros. Se
não o são, não é seguro permitirdes ser ensinados por ele, pois há o grande perigo de, não podendo
comunicar bondade ao vosso coração, ele comunique perversidade. Esse perigo deve ser evitado, por todos
os meios. "Quem é culto nas escrituras, sem pecado, impoluído pela luxúria, esse é o maior conhecedor de
Brama, é o verdadeiro instrutor."
Quem abre os olhos do aspirante depois da religião é o instrutor. Com o instrutor, portanto, nossas relações
são idênticas às existentes entre um ancestral e seu descendente. Sem fé, humildade, submissão, e
veneração em nossos corações para com o nosso instrutor, não haverá em nós qualquer florescimento
religioso. É fato significativo que onde há essa espécie de relação entre o instrutor e o aprendiz, e só aí,
surgem os homens de espiritualidade gigantesca, enquanto que nos países onde negligenciaram manter
essa espécie de relação, o instrutor religioso se tornou um simples conferencista - o instrutor esperando
seus cinco dólares e a pessoa ensinada esperando que seu cérebro se encha com as palavras do instrutor,
e cada qual seguindo seu, caminho depois que isso foi feito. Sob tais circunstâncias a espiritualidade se
torna quase uma quantidade desconhecida. Não há nada a transmitir nem nada a receber. A religião de tais
pessoas se torna um negócio. Pensam que podem obtê-la com os seus dólares. Prouvesse a Deus que a
religião fosse obtida tão facilmente! Mas, infelizmente, isso não é possível.
A religião, que é o mais alto conhecimento e a mais alta sabedoria, não pode ser comprada, nem adquirida
através dos livros. Podeis meter vossas cabeças em todos os cantos do mundo, podeis explorar os
Himalaias, os Cáucasos, os Alpes; podeis sondar o fundo do mar e esquadrinhar cada nesga do Tibete e do
deserto de Gobi, mas não a encontrareis em parte alguma, enquanto vosso coração não estiver preparado
para recebê-la e o vosso instrutor não tenha chegado. E quando o instrutor divinamente nomeado chegar,
servi-o com a confiança e a simplicidade de uma criança, abri à sua influência, amplamente, o vosso
coração, e vede nele Deus manifestado. Aos que procuram a verdade com tal espírito de amor e veneração,
o Senhor da verdade revela as coisas mais maravilhosas com relação à verdade, à bondade e à beleza.
Onde quer que Seu nome seja pronunciado, esse lugar se santifica. Quanto mais santificado ficará o
homem que pronuncia Seu nome, e com que veneração devemos nos aproximar do homem do qual vem ter
a nós a verdade espiritual! Tais grandes instrutores da verdade espiritual são, realmente, muito poucos em
número, neste mundo, mas o mundo jamais está inteiramente destituído deles. São sempre as mais belas
flores da vida humana um oceano de misericórdia, sem qualquer motivação".
Mais nobre e mais alto do que todos os demais é outro grupo de instrutores, os avatares18. Podem transmitir
espiritualidade, com um toque, e mesmo com o simples desejo. Os mais baixos e degradados dos
caracteres se tornam santos num segundo, sob a ordem deles. São os instrutores de todos os instrutores,
as mais elevadas manifestações de Deus através do homem. Não poderemos ver a Deus, senão por
intermédio deles. Não podemos deixar de cultuá-los. E, realmente, são eles os únicos que nos cabe cultuar.
18 Avatar - Palavra sânscrita, que significa literalmente "descida" e fala da encarnação de Deus sob forma
humana. Krishna, seria assim, o avatar do Vishnu, a segunda pessoa da Trindade Hinduista, tal como Cristo
foi um avatar da segunda pessoa da Trindade Cristã no corpo de Jesus.
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Deus compreende as deficiências do homem e torna-se homem para fazer bem à humanidade. "Onde quer
que a virtude decaia e a perversidade prevaleça, Eu me manifesto. Para estabelecer a virtude, para destruir
o mal, para salvar o bem, Eu venho de época em época." "Os tolos escarnecem-Me por ter assumido forma
humana, sem conhecer Minha real natureza como Senhor do Universo." Essa é a declaração de Sri Krishna
no Bhagavad-Gitâ sobre a Encarnação. "Quando flui uma grande maré" - diz Bha-gavam Sri Ramakrishna -
"enchem-se todos os pequenos riachos e fossos, sem qualquer esforço ou consciência de sua parte. Assim,
quando a Encarnação vem, uma maré espiritual inunda o mundo, e as pessoas sentem a espiritualidade na
própria atmosfera."
Quem aspira a ser um bhakta, deve saber que "quantas as opiniões tantos os caminhos". Deve saber que
todas as várias seitas das diferentes religiões são as várias manifestações da glória do mesmo Senhor.
"Chamam-Vos por muitos nomes. Dividem-Vos, por assim dizer, por diferentes nomes, e mesmo assim, em
cada um destes se encontra a Vossa onipotência... Alcançais o devoto através de todos estes, e não há
qualquer tempo especial, desde que a alma sinta intenso amor por Vós. É tão fácil aproximarmo-nos de
Vós, e para mim seria um infortúnio não poder amar-Vos." Não apenas isso. O bhakta deve ter o cuidado de
não odiar, sequer de criticar, esses radiantes filhos da luz que são os fundadores das várias seitas. Nem
sequer deve ouvir dizer mal deles.
Muito poucos, realmente, são os que são, ao mesmo tempo, possuidores de ampla simpatia e poder de
apreciação, bem como de intensidade de amor. Verificamos, como regra, que as seitas liberais e
humanitárias perdem a intensidade dos sentimentos religiosos, e em suas mãos a religião tende a
degenerar-se numa espécie de vida de clube político-social. Por outro lado, os sectários intensamente
estreitos, enquanto exibem um amor bastante meritório pelos seus próprios ideais, mostram ter adquirido
cada partícula desse amor através do ódio contra todos os que não sejam exatamente de sua mesma
opinião. Quisera Deus que este mundo estivesse cheio de homens que fossem tão intensos em seu amor
quão amplos em suas simpatias.! Mas tais homens são muito poucos e raros.
Ainda assim, sabemos que é possível educar um grande nú. mero de seres humanos no ideal de uma fusão
maravilhosa da amplitude com a intensidade do amor. E a maneira de o conseguir é através do caminho do
"ideal escolhido". Cada seita de cada religião apresenta à humanidade apenas um ideal que lhe é próprio.
Mas a eterna religião vedantina abre ao gênero humano um número infinito de portas para ingressar-se no
santuário recóndito da Divindade, e coloca diante da humanidade um quase inesgotável desfile de ideais,
existindo em cada um deles uma manifestação do Eterno.
Bhaki-Yoga, portanto, nos impõe o mandamento imperioso de não odiar ou negar qualquer dos vários
caminhos que conduzem à salvação. Contudo, a planta que está crescendo deve ser cercada a fim de
protegê-la enquanto não se torna uma árvore. A tenra planta da espiritualidade morrerá, se exposta cedo
demais à ação da constante mudança de idéias e de ideais. Muitas pessoas, em nome do que pode ser
chamado liberalismo religioso, podem ser vistas alimentando sua ociosa curiosidade com uma contínua
sucessão de ideais diferentes. Ouvir coisas novas constitue, para elas, uma espécie de doença, uma forma
de ebriedade religiosa. Desejam ouvir coisas novas só para obter uma excitação nervosa temporária, e
quando uma dessas influências excitantes já produziu seu efeito sobre elas, estão preparadas para outras.
A devoção a um ideal é absolutamente necessária ao principiante na prática da devoção religiosa. Ele deve
dizer, como Hanuman no Ramayana19: "Embora eu saiba que o Senhor de Sri (Vishnu) e o Senhor de janaki
(Rama) são ambos manifestações do mesmo Ser Supremo, contudo o meu máximo em tudo é o Rama de
olhos de Iótus". Ou, como disse o sábio Tulsidas: "Conquista a simpatia de todos, senta-te com todos, anota
o nome de todos, dizei sim, sim - mas mantém-te firme em teu lugar".
Então, se o aspirante devocional for sincero, dessa pequena semente virá uma árvore gigantesca, como a
banyan da Índia, lançando galho após galho, raiz após raiz, para todos os lados, até cobrir todo o campo da
religião. Assim, o verdadeiro devoto compreende que Aquele que era seu próprio ideal na vida, é cultuado
em todos os Ideais, por todas as seitas, sob todos os nomes, e através de todas as formas.
Com relação ao método e aos meios da Bkati-Yoga, lemos no comentário do Bhagavan Ramanuja sobre os
Sutras da Vedanta: "A obtenção de Bhakti vem através do discernimento do domínio das paixões, dos
exercícios, do trabalho sacrificial, da pureza, da energia, e da supressão da excessiva alegria".
19 Ramayána - Palavra sânscrita que significa, literalmente, "Jornada de Rarna" (Rama é personagem
histórico da India, ou, em Outros casos, como aqui, por exemplo, a sétima encarnação de Vishnu).
Rarnayana, um poema de 50.000 versos cantando as façanhas do filho de Daçaratha Rama, é atribuído ao
poeta Valmiki.
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Viveka, ou discernimento consiste, segundo Ramanuja, em discernir, entre outras coisas, o alimento puro do
impuro. "Quando o alimento é puro, o elemento sattva20 se purifica e a memória se aprimora."
A questão de alimentos sempre foi das mais vitais no que se refere aos bhaktas. Excluída a extravagância a
que atingiram algumas das seitas de Bhakti, há urna grande verdade subjacente nesta questão de
alimentos. Os materiais que recebemos através da nossa alimentação, para a estrutura do nosso corpo,
determinam, em grande parte, a nossa constituição mental. Portanto, o alimento que ingerimos deve ser
visto de maneira muito particular.
Este discernimento do alimento é, afinal, de importância secundária. A passagem acima citada é explicada
por Shankara de uma forma diferente, dando significação inteiramente diversa à palavra ahara, traduzida
geralmente por "alimento". Segundo ele, "ahara é o que se recolhe. O conhecimento das várias sensações,
tal como o do som, é recolhido para prazer do gozador. A purificação do conhecimento recolhido pelos
sentidos se chama purificação do alimento (ahara). Purificação do alimento significa a aquisição do
conhecimento de sensações não maculadas pelos defeitos do apego, da aversão, da desilusão. Tal é o
significado. Portanto, sendo purificado tal conhecimento, ou abara, o sattva material de seu possuidor - o
órgão interno - se tornará puro, e purificado o sanva, resultará uma ininterrupta memória do Infinito".
Essas duas explicações mostram-se aparentemente conflitantes, mas ambas são verdadeiras e
necessárias. A manipulação e controle do que pode ser chamado corpo mais sutil, isto é, a mente, são
funções mais elevadas, sem dúvida alguma, do que o controle do corpo físico, mais grosseiro. Mas o
controle do mais grosseiro é absolutamente necessário para capacitar uma pessoa a chegar ao controle do
corpo mais sutil. Portanto, o principiante deve dar atenção especial às regras dietéticas transmitidas por
uma sucessão de instrutores acreditados. Mas o fanatismo extravagante e destituído de significação, que
levou a religião inteiramente para a cozinha, como se pode observar em algumas de nossas seitas, é uma
espécie peculiar de puro e simples materialismo. Não é inana, nem Bhakti, nem Karma. É uma forma
especial de demência. Portanto, o racional é que é necessário haver discernimento na escolha da
alimentação, para se obter esse estado de composição mental superior, que de outra maneira não se pode
obter facilmente.
Domínio das paixões é o passo seguinte. Refrear os órgaos em sua tendência de procurar os objetos dos
sentidos, controlá-los, e trazê-los sob a orientação da vontade, eis a virtude central na cultura religiosa.
Então vem a prática do autodomínio e da auto-negação. Todas as imensas possibilidades de compreensão
divina da alma não podem ser efetivadas sem luta e sem essa prática por parte do devoto aspirante. "A
mente deve pensar sempre no Senhor." É muito duro, de início, levar a mente a pensar sempre no Senhor,
mas com cada novo esforço se fortalece em nós o poder de fazer tal coisa.
Depois, quanto ao trabalho sacrificatório entende-se que os cinco grandes sacrifícios" (culto, estudo, e
diversas espécies de atividades humanitárias) devem ser habitualmente realizados.
Pureza é a disciplina absolutamente básica, a rocha em que se assenta todo o edifício de Bhakti. Limpar o
corpo externamente e selecionar o alimento são coisas fáceis, mas sem a limpeza e pureza internas, as
práticas externas não têm nenhum valor. Na lista de qualidades que conduzem à pureza, tal como foi dada
por Rãmanuia, estão enumeradas a veracidade; a sinceridade; fazer o bem a outros sem qualquer ganho
pessoal; não ofender ninguém por pensamento, palavra ou ação; não cobiçar as posses alheias; não manter
pensamentos vãos; e não ruminar as injúrias recebidas de outrem.
Nesta lista, a idéia que merece referência especial é ahimsa, a inofensividade. O dever de não ofender, é,
por assim dizer, obrigatório em nossas relações com todos os seres. Não significa, simplesmente, como
acontece com alguns, não prejudicar os seres humanos, mas não ter misericórdia para com os animais
inferiores. Nem significa, como pensam outros, proteger cães e gatos e alimentar formigas com açúcar, mas
mantendo a liberdade de prejudicar o seu irmão humano da maneira mais horrível. É notável observar como
quase todas as boas idéias deste mundo podem ser levadas a um extremo repulsivo. Uma boa prática
levada ao extremo e executada de acordo com a letra da lei, torna-se um mal positivo. Os monges
malcheirosos de certas ceitas religiosas, que não se banham para que a vermina de seus corpos não seja
morta, jamais pensam no desconforto e nas doenças que levam a seus semelhantes. Não pertencem,
portanto, à religião dos Vedas.
20 Sattva - Qualidade de pureza, harmonia e paz que deve prevalecer entre os místicos e yogues.
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Devemo-nos lembrar sempre, em conseqüência, de que as práticas externas só têm valor como meios
auxiliares para desenvolver a pureza interior. É melhor ter apenas pureza interna, quando não é praticável a
minuciosa atenção às observâncias externas. Mas ai do homem e ai da nação que esquecem a parte
essencial, real, interna, e espiritual, da religião, e agarram-se mecanicamente, com apego mortal, a todas as
formas externas e jamais se separam delas! As formas só têm valor enquanto são expressões da vida
interior. Se cessaram de expressar vida, esmagai-as sem misericórdia.
O meio seguinte para a obtenção de Bhakti é energia. "Esse Atman não será obtido pelos fracos." Tanto a
força física como a mental estão aqui englobadas. "Os fortes, os resistentes" são os únicos estudantes
adequados. Que podem fazer as coisinhas débeis, decrépitas? Irão quebrar-se em pedaços sempre que as
misteriosas forças do corpo e da mente forem acordadas, mesmo levemente, pela prática de qualquer das
Yogas. "Os jovens, os sadios, os fortes- são os que podem lograr sucesso. Força física, portanto, é
absolutamente necessária. Só um corpo forte pode suportar o choque da reação que resulta das tentativas
para controlar os órgãos. O que deseja tornar-se um bhakta, deve ser forte, deve ser sadio. Quando os
miseravelmente fracos tentam qualquer das Yogas, possivelmente irão adquirir moléstia incurável, ou
enfraquecer a mente. Enfraquecer voluntariamente o corpo não é, realmente, uma receita para o
esclarecimento espiritual.
Os fracos mentalmente também não podem ter sucesso na obtenção de Atman. Quem aspire ser um bhakta
deve ser animado. No mundo ocidental, a idéia de um homem religioso é a daquele que jamais sorri, que
parece ter sempre uma nuvem escura pendendo sobre seu rosto, que deve ser comprido, com a mandíbula
quase deslocada. As pessoas de corpos emaciados e rostos compridos são pacientes para médicos; não
são yogues. A mente animada é que se faz perseverante. A mente forte é que desbasta seu caminho
através de milhares de dificuldades. E a mais dura de todas as tarefas, o abrir nosso caminho entre as
redes de maya, pertence às vontades de gigantes.
Ainda assim, ao mesmo tempo, a alegria exagerada deve ser evitada. A alegria exagerada torna-nos
impróprios para o pensamento sério, e também desperdiça em vão as energias da mente. Quanto mais forte
a vontade, menor é a submissão às vacilações emocionais. Hilaridade excessiva é tão censurável quanto o
excesso de triste seriedade, e toda a compreensão religiosa só é possível quando a mente está em
condições firmes, pacíficas, de equilíbrio harmonioso.
É assim que se deve começar a aprender como amar o Senhor.
Terceira parte
Na Bhakti-Yoga o segredo central é saber que as várias paixões, sentimentos e emoções do coração
humano não são errados em si mesmos; apenas devem ser cuidadosamente controlador e receber uma
condição superior de excelência. A direção mais elevada é a que nos leva a Deus; toda outra direção é
inferior.
Terminamos a consideração do que podemos chamar a Bhakti preparatória, e entraremos agora no estudo
da suprema devoção. Todas as preparações pretendem apenas a purificação da alma. A repetição de
nomes, de rituais, de formas, e os símbolos todas essas várias coisas são para a purificação da alma.
O maior purificador, entre essas coisas, um purificador sem o qual não se pode entrar nas regiões da
devoção superior, é a renúncia. Isso assusta muitos, mas, sem ela não pode haver crescimento espiritual.
Em todas as Yogas a renúncia é necessária. Eis a pedra de toque, o centro real e o coração real de toda a
cultura espiritual: a renúncia. Eis religião: a renúncia. Quando a alma humana se retrai das coisas do mundo
e tenta penetrar nas coisas mais profundas, quando o homem, o Espírito, que de certa forma aqui se
materializou e concretizou, compreende que ele vai ser destruído e reduzido quase a simples matéria, e
volve seu rosto à matéria - então começa a renúncia, então começa o verdadeiro crescimento espiritual.
A renúncia do karma-yogue toma a forma de desistir de todos os frutos de suas ações. Ele não se apega
aos resultados de seus trabalhos, não se importa com recompensas, já ou depois.
O raia-yogue sabe que o conjunto da natureza se destina a ser um meio para a alma adquirir experiências,
e que o resultado de todas as experiências da alma é tornar-se ela consciente de sua eterna separação da
natureza. A alma humana tem de entender e realizar que ela tem sido espírito, e não matéria, através da
eternidade, e que a sua conjunção com a matéria é, e pode ser, apenas temporária. O raja-yogue aprende a
lição da renúncia através de suas próprias experiências da natureza.
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O jnane-yogue tem de passar pela mais rigorosa das renúncias, e precisa comprender, desde o princípio,
que a totalidade desta natureza aparentemente sólida não passa de uma ilusão. Tem de compreender que
toda e qualquer espécie de manifestação de poder da natureza pertence à alma e não à natureza. Tem de
saber, desde o início, que todo o conhecimento e toda a experiencia estão na alma e não na natureza;
assim tem, de pronto e pela penetrante força da convicção racional, de romper todo aprisionamento à
natureza. Deixa a natureza e tudo quanto a ela pertence; deixa-os desvanecer-se e procura manter-se
sozinho.
De todas as renúncias, a mais natural, por assim dizer, é a do bhakta-yogue. Aqui não há violência, nada a
abandonar, nada a arrancar de nós mesmos, nada de que devamos ser violentamente separados. A
renúncia do bhakta é fácil, corre maciamente, e é tão natural como as coisas que nos rodeiam. Vemos a
manifestação desse tipo de renúncia, embora mais ou menos sob forma caricaturesca, todos os dias, em
torno de nós. Um homem começa a amar uma mulher; depois de algum tempo ama outra, e deixa que se vá
a primeira. Ela se esvai de sua mente de maneira suave, delicada, sem que ele sinta, absolutamente, sua
falta. Uma mulher ama um homem. Começa, então, a amar outro homem, e o primeiro desaparece de sua
mente com toda a naturalidade. Um homem ama sua própria cidade, depois começa a amar seu país, e o
amor intenso por sua cidadezinha vai caindo maciamente, naturalmente. O homem aprende a amar todo o
mundo: seu amor por seu país, seu patriotismo intenso e fanático fene-se sem magoá--lo, sem qualquer
manifestação de violência. Um homem sem cultura ama intensamente os prazeres dos sentidos; conforme
vai--se educando, começa a amar os prazeres intelectuais, e seu prazer dos sentidos vai diminuindo cada
vez mais. Homem algum pode gozar uma refeição com o mesmo sabor e prazer com que a gozam um cão
ou um lobo, Mas o deleite que um homem sente em suas realizações e experiências intelectuais, um cão
jamais sentirá.
Quando um homem ascende cada vez mais alto no plano do intelecto, muito além do simples perisamento,
quando galga o plano da espiritualidade e da divina inspiração, acha-se num estado de beatitude,
comparado com o qual nada são todos os prazeres dos sentidos, ou mesmo do intelecto, nada são. Quando
a Lua brilha intensamente, todas as estrelas se turvam, e quando o Sol brilha, é'a Lua que se turva. A
renúncia necessária para a obtenção de Bhaki não se obtém por matar seja o que for, mas chega
naturalmente, tal como em presença de uma luz crescentemente mais forte as luzes menos intensas se
obscurecem cada vez mais até desaparecerem por completo. Assim, o amor aos prazeres dos sentidos e do
intelecto se obscurece, e é posto de lado, atirado à sombra criada pelo próprio amor de Deus.
Esse amor a Deus cresce até assumir a forma do que se pode chamar devoção suprema. As formas
desaparecem, os rituais fogem, os livros são ultrapassados; as imagens, templos, igrejas, religiões e seitas,
países e nacionalidades - todas essas pequenas limitações e entraves se desprendem, por sua própria
natureza, daquele que conhece esse amor de Deus. Nada resta para entravá-mo-nos, ou para algemar a
sua liberdade. Assim, na renúncia que auxilia a devoção não há aspereza, nem escura, nem luta, nem
repressão, nem supressão. O bhakta não precisa suprimir uma só de suas emoções. Esforça-se, apenas,
por intensificá-las e dirigi-Ias para Deus.
Na natureza vemos amor por toda a parte. O que quer que na sociedade seja bom, grande, sublime, é
trabalho do amor. O que quer que em sociedade seja mau, negativo, diabólico, é também o trabalho mal
dirigido da mesma emoção de amor. 9 essa mesma emoção que nos dá o puro e santo amor conjugal entre
marido e mulher, bem como a espécie de amor que satisfaz as formas mais baixas de paixão animal. A
emoção é a mesma, mas sua manifestação é diferente, nos diferentes casos.
Bhaki-Yoga é a ciência do amor superior. Mostra-nos como dirigi-lo, como controlá-lo, como governá-lo,
como usá-lo, codo dar--lhe alvo novo, por assim dizer, e disso obtém os mais altos e gloriosos resultados,
isto é, o modo de o fazer conduzir-nos à bem-aventurança espiritual. Bhakti-Yoga não diz: "Abandona!" Diz,
apenas: "Ama - ama o Supremo!" E tudo quanto é inferior larga naturalmente aquele cujo objeto de seu
amor é o Supremo.
63
"Nada posso falar a Teu respeito, a não ser que és o meu amor. És belo! És a própria beleza!" O que
realmente se nos exige nessa Yoga é que nossa sede de beleza seja dirigida para Deus. Que é a beleza
num rosto humano, no céu, nas estrelas, e na Lua? É apenas uma apreensão particular da real, envolvente
beleza divina. "Ele brilha, e tudo brilha. É através de Sua luz que todas as coisas brilham." Tomai esta alta
posição de Bhakti, que vos faz esquecer imediatamente vossas pequenas personalidades. Afastai-vos de
todos os pequenos e egoísticos apegos mundanos. Não contempleis a humanidade como sendo o centro de
todos os vossos interesses humanos e superiores. Conservai-vos como uma testemunha, como um
estudante, e observai os fenômenos da natureza. Mantende o sentimento de desapego pessoal no que se
refere ao homem, e observai como esse poderoso sentimento de amor se manifesta no mundo. As vezes se
produz uma pequena fricção mas é apenas no curso da luta para obter o superior, o verdadeiro amor. As
vezes há uma pequena luta, ou uma pequena queda, mas isso é apenas passageiro. Ficai de lado e deixai
que essas fricções venham, livremente. Sentis a fricção apenas quando estais na corrente do mundo, mas
quando estais fora dela, simplesmente como testemunha ou estudante, podereis ver que há milhões e
milhões de canais através dos quais Deus se está manifestando como amor.
"Onde quer que haja qualquer beatitude, mesmo na mais sensual das coisas, há uma faísca da beatitude
eterna, que é o próprio Senhor." Mesmo na mais baixa forma de atração, há um germe do amor divino. Um
dos nomes do Senhor em sânscrito é Hari, que significa que Ele atrai todas as coisas para si. E Sua atração
é, realmente, a única digna dos corações humanos. Quem pode atrair realmente uma alma? Somente Ele!
Pensais que matéria morta possa realmente atrair uma alma? jamais o fez e jamais o fará. Quando vedes
um homem seguindo um belo rosto, pensais que é um punhado de moléculas materiais organizadas o que
realmente atrai esse homem? Absolutamente. Atrás daquelas partículas materiais deve haver, e há, o jogo
da divina influência e do amor divino. O homem ignorante não o sabe, mas, não obstante, consciente ou
inconscientemente, é atraído por esse amor, e apenas por ele. Assim, mesmo as mais baixas formas de
atração, derivam seu poder do próprio Deus. O Senhor é o grande ímã, e nós somos todos como que
limalhas de ferro; estamos sendo sempre atraídos por Ele, e todos lutamos por alcançá-Lo. Toda essa
nossa luta neste mundo não tem, seguramente, fins egoísticos. Os tolos não sabem o que estão fazendo; a
obra de sua vida, afinal, é aproximarem-se do grande ímã. Todas as tremendas lutas e combates da vida
visam fazer-nos caminhar para Ele, fundamentalmente, e com Ele nos unificarmos.
O bhakta-yogue, entretanto, conhece o significado das lutas da vida. Compreende-as. Passou por uma
longa série dessas lutas e sabe o que elas significam, e deseja, ansiosamente, libertar-se de suas fricções.
Deseja evitar a colisão e vai diretamente para o centro de toda a atração, o grande Hari. Tal é a renúncia do
bhakta. Essa poderosa atração em direção a Deus faz com que todas as demais atrações lhe desapareçam.
Esse poderoso e infinito amor de Deus, que lhe entra no coração, não deixa lugar para que outro amor
qualquer ali viva. Como poderia ser de outra maneira? Bkakti enche seu coração com as águas divinas do
oceano do amor, que é o próprio Deus. Não há lugar ali para pequenos amores. Isso quer dizer que a
renúncia do bhakta é esse desapego por todas as coisas que não sejam Deus, o qual resulta do grande
apego a Deus.
Essa é a preparação ideal para atingir o supremo Bha-kti. Quando advém essa renúncia, as portas se
abrem para a alma passar e alcançar as elevadas regiões da devoção suprema. Só o bhakta atingiu aquele
supremo estado de amor comumente chamado fraternidade do homem. Os demais indivíduos apenas
falam. Ele não vê distinções. O poderoso oceano do amor entrou nele, que não vê o homem no homem,
mas vê seu Bem-Amado em toda a parte. Através de todos os rostos, para ele, brilha Hari. A luz do Sol ou
da Lua são a Sua manifestação. Onde quer que haja beleza e sublimidade, para ele provêm de Hari. Tais
bhaktas ainda vivem; o mundo nunca está sem eles. Embora mordidos por uma serpente, dizem apenas
que um mensageiro do seu Bem-Amado veio até eles. Só esses homens têm o direito de falar em
fraternidade universal. ignoram ressentimentos; suas mentes jamais reagem sob a forma de ódio ou ciúme.
O exterior, o sensual, desvaneceu deles para sempre. Como podem ter cólera, quando, através de seu
amor, estão sempre capacitados a ver a Realidade atrás dos cenários?
Na Bhakti-Yoga o segredo central é saber que as várias paixões, sentimentos e emoções do coração
humano não são erradas em si próprias. Apenas têm de ser cuidadosamente controladas, recebendo
direção cada vez mais elevada, até que atinjam a própria e mais alta condição de excelência. A direção
superior é a que nos leva a Deus: toda a direção que não seja essa, é inferior.
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A conclusão a que chega o bhãkta é que, se insistirdes em amar apenas uma pessoa após a outra, podeis
continuar amando-as por uma infinita vastidão de tempo, sem serdes absolutamente capazes de amar o
mundo como um todo. Todavia, quando, por fim, a idéia central é alcançada, que a sorna total de todo o
amor é Deus; que a soma total das aspirações de todas as almas do universo, estejam livres, ou
prisioneiras, ou em luta pela libertação, é Deus, então, e só então será possível o indivíduo fazer nascer o
amor universal. Se amamos essa soma total, amamos tudo. Amar o mundo e fazer-lhe bem será então
coisa fácil. Temos de obter esse poder apenas amando a Deus em primeiro lugar; senão, não passa de um
divertimento fazer bem ao mundo.
"Tudo é Ele e Ele é o meu Amante; eu O amo" - diz o bhakta. Desta maneira tudo se torna sagrado para o
bhakta, porque todas as coisas são d'Ele. Todos são Seus filhos, Seu corpo, Sua manifestação. Como
podemos, pois prejudicar alguém? Como podemos, pois, não amar alguém? Como o amor de Deus virá,
como segura conseqüência, o amor de tudo no universo. Quanto mais próximos de Deus chegamos, mais
começamos a ver que todas as coisas estão n'Ele. Quando a alma consegue apropriar-se da beatitude
desse amor supremo, começa, também, a vê-Lo em tudo. Nosso coração se torna, assim, uma fonte eterna
de amor. E quando alcançamos estados ainda mais elevados neste amor, todas as pequenas diferenças
entre as coisas do mundo se perdem completamente. O homem já não é visto como homem, mas só como
Deus. Não mais se vê o animal como simples animal, mas como Deus. Mesmo o tigre já não é um tigre,
mas a manifestação de Deus. Assim, nesse intenso estado de Bhakti, o culto é ofereci-* do a tudo: a toda a
vida e a todos os seres.
Como resultado desta espécie de intenso e oniabsorvente amor, vem o sentimento de perfeita autoabnegação
e a convicção de que nada que acontece é contra nós. Então, a alma amorosa está apta a dizer,
se a dor vier: "Benvinda sejas, dor!" Se a angústia vier, ela dirá: "benvinda sejas, angústia! Também tu vens
do Bem-Amado!- Se a serpente vier, dirá: "Benvinda sejas, serpente!" . Se a morte vier, recebela-á o bhakta
com um sorriso: "Abençoado sou eu porque todos vêm a mim; todos são benvindos -. Nesse estado de
perfeita resignação nascido do intenso amor por Deus e por tudo que é Seu, o bhakta cessa de distinguir
entre o prazer e a dor, no que lhe afetam. Não sabe o que é queixar-se de dor ou de angústia, e essa
espécie de resignação sem queixas diante da vontade de Deus, que é todo amor, vem a ser, realmente,
uma aquisição mais valiosa do que toda a glória das grandes e heróicas realizações.
Para a imensa maioria da humanidade, o corpo é tudo, é todo o universo, e os prazeres corporais são o
máximos. Podemos todos lidar por manter nossos corpos mais ou menos satisfatoriamente corpos, e
durante períodos de tempo maiores ou menores. Apesar disso, nossos corpos têm que desaparecer: não
são permanentes. Abençoados são aqueles cujos corpos são destruídos a serviço de outros. "Riqueza, e
mesmo a própria vida, o sábio sempre as mantêm para serviço de outros. Neste mundo há apenas uma
coisa certa, que é a morte, e é muito melhor que o corpo morra por uma boa 'causa do que por uma causa
má." Podemos arrastar nossa vida por cinqüenta ou cem anos, mais, depois, disso, o que acontece? Tudo
quanto é resultado de combinação deve dissolver--se e morrer. Deverá chegar uma época em que ocorrerá
a sua decomposição, Jesus, Buda, Maomé, estão todos mortos. Todos os grandes profetas e instrutores do
mundo estão mortos. "Neste mundo evanescente, onde tudo está caindo em pedaços, temos que fazer o
mais elevado uso do tempo de que dispomos" - diz o bhakta. E, realmente, o mais elevado uso da vida é
mantê-la a serviço de todos os seres.
É a horrível idéia do corpo o que nutre todo o egoísmo do mundo - apenas essa ilusão de que somos
inteiramente o corpo que possuímos, e que devemos fazer o possível por preservá-lo e satisfaze-lo. Se
souberdes que sois positivamente outra coisa que não o vosso corpo, nada tereis contra o que lutar, nada
tereis para combater. Estareis mortos para toda a idéia de egoísmo. Assim o bhakta declara que nos
devemos manter como se já estivéssemos mortos para todas as coisas do mundo, e que isso é realmente, a
auto-abnegação. Que as coisas venham como puderem. Este é o significado da expressão: "Faça-se a Tua
vontade". Neste estado de sublime resignação tudo quanto tenha a forma de apego desaparece
completamente, exceto esse oniabsorvente amor por Aquele no qual todas as coisas vivem e se movem, e
tem o seu ser. Esse apego do amor de Deus, é, com efeito, um apego alma; antes rompe, efetivamente,
todos os que não encadeia a grilhões.
65
Quarta parte
Apanha-se objeto após objeto, e o ideal interior é sucessivamente projetado neles todos. E nota-se que
todos esses objetos externos são inadequados como expoentes do ideal interior sempre em expansão, e,
são, naturalmente, rejeitados, um após o outro. Por fim, o aspirante começa a refletir que é inútil a tentativa
de colocar o ideal em objetos externos, pois estes nada são, comparados com o próprio ideal. E, com o
decorrer do tempo, adquire o poder de realizar o mais alto o mais generalizado ideal abstrato, inteiramente
como uma abstração, que, para ele, é bastante viva e real.
Podemos representar o amor como um triângulo, em que cada ângulo corresponde a uma de suas
características inseparáveis. Não pode haver triângulo sem os três ângulos, e não pode haver amor
verdadeiro sem as três seguintes características:
O primeiro ângulo do nosso triângulo do amor é o fato do amor não conhecer transações. Sempre que se
procura algo em retribuição, não pode haver amor real. Ele torna-se uma questão de venda-e-compra.
Enquanto houver em nós qualquer idéia de obter tal ou qual favor de Deus em retribuição de nosso respeito
e fidelidade a Ele, não haverá verdadeiro amor florescendo em nosso coração. Os que adoram Deus porque
desejam que Ele lhes prodigalize favores, com certeza não O adorarão se tais favores não forem
outorgados. O bhakta ama o Senhor porque Ele é adorável. Não há outro motivo originando ou dirigindo a
divina emoção do verdadeiro devoto.
Ouvimos dizer que um grande rei foi certa vez a uma floresta e ali encontrou um sábio. Conversou um
pouco com ele e ficou muito satisfeito com a sua pureza e sabedoria. Desejou então que o sábio aceitasse
dele um presente, o que o outro recusou, dizendo: "Os frutos da floresta são alimento bastante para mim.
As puras correntes de água que fluem da montanha dão-me bastante de beber. As cascas das árvores
fornecem-me cobertas, e as grutas da montanha formam o meu lar. Por que receberia eu presentes de vós
ou de quem quer que seja?"
O rei falou: "Apenas para me ser agradável, senhor, recebei, por favor, algo de minhas mãos, e por favor,
vinde comigo à cidade, ao meu palácio".
Depois de muita insistência, o sábio consentiu, por fim, em fazer o que o rei desejava, e acampanhou-o até
o palácio.
Antes de oferecer o presente ao sábio, o rei fez suas orações nestes termos: "Senhor, dai-me mais filhos.
Senhor, dai-me mais riqueza. Senhor, dai-me mais território. Senhor, mantende meu corpo em melhor
saúde. . . " E assim por diante.
Antes que o rei terminasse de fazer sua oração, o sábio se havia levantado e saído caladamente do
aposento. Vendo aquilo, o rei ficou perplexo e começou a segui-lo, exclamando: "Senhor, estais indo
embora! Não recebestes ainda os meus presentes!"
O sábio voltou-se para ele e disse: "Não mendigo de mendigos. Nada mais sois do que um mendigo. Assim,
como podeis me dar alguma coisa? Não sou tolo para pensar em tomar seja o que for de um mendigo como
vós. Ide daqui, Não me sigais".
Fica bem estabelecida a distinção entre simples mendigos e reais amantes de Deus. Mendicância não é
linguagem de amor.
Cultuar Deus, mesmo por amor da salvação ou de outra recompensa, é igualmente uma degeneração. O
amor não conhece recompensa. O amor é sempre por amor do amor. O bhakta ama porque não pode
deixar de amar. Quando vedes uma bela paisagem e vos apaixonais por ela, não pedis que essa paisagem
vos faça um favor, nem a paisagem exige algo de vós. Ainda assim, aquela visão vos dá um estado
beatífico da mente, acalma toda a fricção de vossa alma, faz-vos calmos, quase vos eleva, na ocasião,
acima de vossa natureza mortal, colocando-vos na condição de um êxtase bastante divino. Essa natureza
do verdadeiro amor é o primeiro ângulo do nosso triângulo. Não peçais coisa alguma em troca de vosso
amor. Que vossa posição seja sempre a do dador. Dai vosso amor a Deus, mas nem a Ele peçais nada em
retribuição.
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O segundo ângulo do nosso triângulo de amor é que o amor não conhece medo. Os que amam a Deus
através do medo, são os seres humanos de tipo mais ínfimo, muito pouco desenvolvidos como homens.
Cultuam Deus porque têm medo de castigos; para eles Deus é um grande ser, com um chicote numa das
mãos e um cetro na outra. Se não O obedecerem, receiam ser chicoteados. É uma degradação cultuar
Deus através do medo do castigo. Tal culto, se culto se pode chamar, é a mais rude forma de culto através
do amor. Enquanto houver qualquer medo em vosso coração, como pode haver ali amor, também? O amor
vence o medo, naturalmente. Pensai numa jovem mãe que vai pela rua, e um cão lhe late. Tem medo e
corre para a casa mais próxima. Suponde, porém, que no dia seguinte ela está na rua com seu filho, e um
leão salta sobre ele. Qual será agora a atitude daquela mãe? Por certo na própria boca do leão, protegendo
seu filho.
O amor vence todo o medo. O medo provém da idéia egoísta de nos separarmos do universo. Quanto
menor e mais egoísta eu me faço, maior é o meu medo. Se um homem pensa que ele é um pequenino
nada, o medo virá seguramente sobre ele. E quanto menos pensardes em vós como uma insignificante
pessoa, menos medo tereis. Enquanto houver o menor lampejo de medo em vós, não podereis ter amor.
Amor e medo são incompatíveis. Deus nunca é temido por aqueles que O amam. O mandamento: "Não
tomes o nome do Senhor em vão", faz rir o verdadeiro amante de Deus. Como pode haver qualquer
blasfêmia na religião do amor? Quanto mais tomardes o nome do Senhor, tanto melhor para vós, qualquer
que seja o modo como o façais. Apenas repetis Seu nome porque O mais.
O terceiro ângulo do triângulo do amor é que o amor não tem rival, pois sempre corporifica o mais alto ideal
do amante. O verdadeiro amor jamais nos chega enquanto o objeto do nosso amor não se tornar o nosso
mais alto ideal. Pode ser que em muitos casos o amor humano seja mal dirigido e mal colocado, mas para a
pessoa que ama, a coisa que ama é sempre seu mais alto ideal. É possível que uns vejam esse ideal no
mais vil dos seres, e outros no mais elevado dos setes. Contudo, em cada caso é o ideal, apenas, que pode
ser verdadeira e intensamente amado. O supremo ideal de cada homem se chama Deus. Ignorante ou
sábio, santo ou pecador, homem ou mulher, educado ou não, culto ou ignorante - para cada ser humano o
ideal supremo é Deus. A síntese de todos os mais elevados ideais de beleza, de sublimidade, e de poder
nos dá a mais completa concepção do amoroso e amorável Deus.
Esses ideais existem, naturalmente, sob essa ou aquela forma, em todas as mentes: formam uma parte de
todas as mentes. Todas as manifestações ativas da natureza humana são lutas para que esses ideais
sejam concretizados na vida prática. Todos os vários movimentos que vemos em torno de nós, na
sociedade, são causados pelos vários ideais em várias almas, tentando manifestar-se e concretizar-se. O
que está no interior pressiona para se exteriorizar. Essa influência perenemente dominante do ideal é a
única energia, a única força motriz que se pode ver atuando constantemente no meio da humanidade, Pode
ser que depois de centenas de nascimentos e de lutas através de milhares de anos, um homem verifique
ser inútil tentar fazer com que o ideal interior modele completamente as condições externas, e a elas se
ajuste. Depois de compreender isto, ele não mais tenta projetar seu ideal no mundo exterior, mas cultua o
ideal como ideal em si, do mais alto ponto de vista do amor.
Este ideal abstratamente perfeito compreende todos os ideais menores. Todos admitem como verdadeiro o
ditado: "O amoroso vê a beleza de Helena no rosto de uma etíope". O homem que está de lado, como
observador, vê que o amor está aqui mal colocado; mas, não obstante, o amoroso vê a sua Helena, e de
maneira alguma a etíope. Helena ou etíope, os objetos do nosso amor são os centros em torno dos quais
nossos ideais se cristalizam. Que cultua o mundo, habitualmente? Não, por certo, o onienvolvente e perfeito
ideal do supremo devoto e amante. O ideal que homens e mulheres cultuam habitualmente é o que está
neles próprios. Cada qual projeta seu próprio ideal no mundo exterior, e ajoelha-se diante dele. Eis porque
notamos que os homens que são cruéis e sedentos de sangue concebem um Deus sedento de sangue; é
que só podem amar seus próprios ideais mais elevados. Eis por que os homens bons têm uma idéia muito
alta de Deus, e seus ideais, são, realmente, muitíssimo diferentes dos ideais dos outros.
Qual é o ideal do amante que superou a idéia de egoísmo, de permuta, de transação, e que não conhece o
medo? Mesmo ao grande Deus tal homem dirá: 'Mar-Te-ei tudo o que é meu e nada quero de Ti.
Realmente, nada há que eu possa chamar meu". Quanto um homem adquire tal convicção, seu ideal se
torna um ideal de perfeito amor, de perfeita intrepidez, nascida do amor. O ideal mais elevado de uma
pessoa assim não está envolto em nenhuma estreiteza da particularidade; é amor universal, amor sem
limites ou entraves, o próprio amor, o amor absoluto. Esse grande ideal da religião do amor é cultuado e
amado absolutamente como tal, sem ajuda de quaisquer símbolos ou sugestões. Esta é a forma mais
elevada da suprema Bhaki, a que cultua como ideal o ideal oniabancante; todas as demais formas de Bkakti
são apenas etapas intermediárias para atingi-Ia.
67
Todos os nossos insucessos e todos os nossos êxitos quando seguimos a religião do amor, estão no
caminho para a realização desse ideal único. Objeto após objeto é tomado, e o ideal interior é
sucessivamente projetado neles todos; e todos esses objetos externos provam serem inadequados como
expoentes do ideal interior sempre em expansão, e são naturalmente rejeitados, um após outro. Por fim, o
aspirante começa a pensar que é inútil a tentativa de colocar o ideal em objetos externos, pois tais objetos
nada são comparados ao ideal em si. E, com o correr do tempo, adquire o poder de realizar o mais alto e
mais generalizado ideal abstrato inteiramente como uma abstração,* que, para ele, é bastante viva e real.
Quando o devoto atingiu tal ponto, não mais se vê impelido a indagar se Deus pode ou não ser
demonstrado, se é onipotente e onisciente ou não. Para ele, trata-se apenas do Deus do amor. Ele é o mais
alto ideal de amor, e isso é suficiente para todos os seus propósitos. Ele, como amor, é autoevidente, não
requer provas para demonstrar ao amoroso a existência do amado. Os Deuses-magistrados das outras
formas de religião podem exigir muitas provas para evidenciá-los, mas o bhakta não pensa e não pode
jamais pensar em tais Deuses. Para ele, Deus existe inteiramente como amor.
Há quem diga que o egoísmo é a única força motriz por trás das atividades humanas. Isso também é amor,
inferiorizado por ser particularizado. Quando penso em mim mesmo como compreendendo o Universal, não
pode haver, seguramente, egoísmo em mim, mas quando, erroneamente, penso que sou algo pequeno,
meu amor se torna particularizado e estreito. O erro consiste em estreitar e restringir a esfera do amor.
Todas as coisas no universo são de origem divina e merecem ser amadas. 9 preciso, contudo, conservar
em mente que o amor do todo incluí o amor das partes.
Este todo é o Deus dos bhaktas, e todos os outros Deuses, Pais do Céu, Governantes, ou Criadores, e
todas as teorias e doutrinas e livros, não têm para eles nenhum propósito nem significação, já que, através
do seu amor e devoção supremos, eles se ergueram inteiramente acima dessas coisas. Quando o coração
é purificado, limpo, e cheio até as bordas com o néctar divino do amor, todas as idéias de Deus se tornam
simplesmente pueris e são rejeitadas como inadequadas e sem Valor. Tal é, com efeito, o poder do amor
supremo. O perfeito bhakta não mais vai ver Deus nos templos e igrejas; sabe que não há lugar onde não O
encontre. Encontra-O tanto fora como dentro do templo. Encontra-o tanto na perversidade dos perversos
como na santidade dos santos, porque já O instalou em glória em seu próprio coração, como a única,
poderosa, inextinguível luz do amor que está sempre refulgindo e eternamente presente.
É impossível expressar em linguagem humana a natureza desse ideal supremo e absoluto. Mesmo o mais
alto vôo da humana imaginação é incapaz de compreender isso em toda a sua infinita perfeição e beleza.
Contudo, os seguidores da religião do amor em sua forma mais alta como na mais baixa, em todos os
países, têm precisado usar a humana linguagem para compreender e definir seu próprio ideal de amor.
Ainda mais: o próprio amor humano, em todas as suas variadas formas, foi feito para simbolizar esse amor
divino inexprimível. Os homens só podem pensar nas coisas divinas à sua maneira humana: para nós, o
Absoluto pode ser expresso apenas em nossa linguagem relativa. Todo o universo é, para nós, uma
composição do Infinito escrita na linguagem do finito. Portanto,, na relação de Deus e Seu culto através do
amor, os bhaktas usam todos os termos comuns associados com o amor comum da humanidade.
Alguns dos grandes escritores da Bhaki suprema tentaram compreender e experimentar esse divino amor
de muitas maneiras. A forma mais baixa na qual esse amor é apreendido, está no que chamam o pacífico -
o shanta. Quando um homem cultua Deus sem o fogo do amor dentro de si, sem sua loucura em seu
cérebro; quando o amor é apenas calmo, banal, um pouco mais alto do que as meras formas, cerimônias e
símbolos, mas de forma alguma caracterizado pela loucura do amor intensamente ativo, é chamado shanta.
Vemos pessoas no mundo que gostam de mover-se lentamente, e outras que vão e vêm como turbilhões. O
shanta-Máta é calmo, pacífico, delicado.
O tipo seguinte, mais alto, é o do dasya, serventia. Vem quando um homem pensa ser o servo do Senhor. O
apego do servo fiel ao mestre é o seu ideal.
O tipo seguinte de amor é sakhya, amizade. "És nosso amigo querido." Tal como um homem abre seu
coração ao seu amigo e sabe que o amigo jamais o irá censurar por sua faltas, mas sempre procurará
ajudá-lo, tal como existe a idéia de igualdade entre ele e seu amigo - amor igual flui e reflui entre o adorador
e seu amistoso Deus. Assim, Deus se torna nosso amigo, o amigo que está próximo, o amigo ao qual
podemos contar francamente todas as histórias de nossa vida. Os mais recônditos segredos de nossos
corações lhe podem ser expostos, com a grande certeza de segurança e apoio. Ele é o amigo que o devoto
aceita como igual. Deus é aqui visto como que nosso companheiro de folguedos.
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Podemos bem dizer que estamos todos brincando neste universo. Tal como as crianças fazem seus jogos,
tal como os mais gloriosos reis e imperados fazem seus próprios jogos, assim o próprio bem amado Senhor
se recreia com este universo. Ele é perfeito. Nada deseja. Por que criaria? A atividade, para nós, está
sempre em função da realização de certo desejo, e o desejo sempre pressupõe imperfeição. Deus é
perfeito. Não tem desejos. Por que continuaria Ele com este trabalho de uma criação sempre ativa? Que
propósito tem em vista? As histórias que falam de Deus criando o mundo, com uma ou outra finalidade que
imaginamos, são boas apenas como histórias, e nada mais. Tudo são realmente folguedos; o universo é o
jogo continuo de Deus. O universo todo deve ser, afinal, um grande e agradável motivo de divertimento para
Ele. Se sois pobres, gozai essa pobreza como divertimento. Se sois ricos, gozai o divertimento de serdes
ricos. Se vem o perigo, também é divertimento, e se vem a felicidade, há nela mais e melhor divertimento. O
mundo não passa de um parque de diversões, e estamos tendo bom divertimento, estamos gozando de um
jogo. E Deus está jogando conosco, todo o tempo. E estamos jogando com Ele. Deus é o nosso eterno
companheiro de folguedos. Como Ele é belo jogando! O jogo termina quando um cicio chega ao fim. Há
repouso por um período de tempo menor ou maior, e de novo tudo se manifesta e torna a jogar.
Só quando vos esqueceis de que tudo não passa de jogo e de que também estais auxiliando o jogo, é que a
angústia surge, com os desgostos. Então o coração se torna pesado, então o mundo faz carga sobre vós
com tremendo poder. Mas, assim que abandonais vossa crença séria na realidade dos incidentes mutáveis
dos três minutos da vida, e sabeis que ela não passa de um estágio no qual estamo-nos divertindo,
ajudando-O a divertir-se, imediatamente toda a angústia cessa para vós. Ele se diverte em cada átomo.
Está-se divertindo quando constrói terras, e sóis, e luas. Está-se divertindo com o coração humano, com os
animais, com as plantas. Somos Suas peças de xadrez, que Ele coloca sobre o tabuleiro, sacudindo-as.
Arranja-nos primeiro de uma forma, depois de outra, e estamos, consciente ou inconscientemente,
ajudando-O em seu jogo. E, 6 bem-aventurança! somos seus parceiros de folguedos!
A seguir vem o que é conhecido como vatsalya, amar a Deus não como nosso pai mas como nosso filho.
Isto pode parecer estranho, mas é uma disciplina que nos capacita a afastar toda idéia de poder em relação
ao conceito de Deus. A idéia de poder traz consigo repeitoso temor. Não deve haver receio no amor. As
idéias de obediência e reverência são necessárias para a formação do caráter, mas quando o caráter está
formado, quando o amoroso deu provas do amor calmo e pacífico, e deu provas também de um pouco da
intensa loucura do amor, já não há necessidade de lhe falar mais sobre ética e disciplina. Conceber Deus
como poderoso, majestoso e glorioso, como Senhor do universo, ou como Deus dos Deuses - é coisa que
não preocupa o amoroso.
Para evitar a associação com Deus da sensação de poder que gera o medo, é que ele O adora como seu
próprio filho. A mãe e o pai não sentem receoso temor em relação ao filho. Não podem ter reverência
alguma pela criança. Não podemos pensar em pedir-lhe qualquer favor. A posição da criança é sempre a de
quem recebe, e por amor ao filho os pais dariam centenas de vezes seu próprio corpo. Milhares de vidas
sacrificariam por esse seu filho. Portanto, Deus é amado como um filho.
A idéia de amar a Deus como filho surge e cresce naturalmente entre as seitas religiosas que acreditam na
encarnação de Deus. Para os maometanos é impossível nutrir a idéia de Deus como filho; recuariam de
horror diante dela. Mas os cristãos e os hindus podem compreendê-la facilmente, porque têm o Menino
Jesus e o Menino Krishna. As mulheres da índia se vêem com freqüência na qualidade de mães de Krishna.
As mães cristãs também podem adotar a idéia de que são mães de Cristo, e essa idéia levará ao Ocidente
o conhecimento da divina maternidade de Deus, de que o ocidental tanto necessita. Superstições,
respeitoso temor, reverência em relação a Deus, são sentimentos profundamente arraigados no âmago de
nosso coração, e por isso levamos longos anos para mergulhar inteiramente em amor nossas idéias de
reverência e veneração, de respeitoso temor, majestade e glória, com referência ao Senhor.
Há mais uma representação humana do divino ideal do amor. É conhecida como madhura, a relação entre
enamorados, que é a mais alta de tal representação. Está baseada, realmente, na mais alta manifestação
de amor deste mundo, e esse amor é também o mais forte que o homem conhece. Que amor sacode toda a
natureza do homem, que amor percorre todos os átomos de seu ser, enlouquece-o, fá-lo esquecer sua
própria natureza, transforma-o, torna-o um deus ou um demônio, como o amor entre homem e mulher?
Nessa doce representação do amor divino, Deus é nosso esposo. Todos somos mulheres, não há homens
neste mundo. Há apenas um Homem, e é Ele, nosso Bem-amado. Todo o amor que um homem dá à
mulher, ou a mulher ao homem, aqui está, para ser dado ao Senhor.
69
Todas as diferentes espécies de amor que vemos neste mundo, e com as quais estamos mais ou menos
meramente brincando, têm Deus como finalidade única. Mas, infelizmente, o homem não conhece o oceano
infinito para o qual esse poderoso rio de amor está constantemente fluindo, e assim, loucamente, muitas
vezes procura dirigi-lo para bonequinhos de seres humanos. O tremendo amor pelo filho, que está na
natureza humana, não é pelo bonequinho que é o filho. Se o aplicardes exclusiva e cegamente no filho,
sofrereis as conseqüências. Mas através desse sofrimento virá o despertar mediante o qual descobrireis
seguramente que se o amor que está em vós é dado a qualquer ser humano, mais cedo ou mais tarde trará
dor e desgosto como resultado.
Portanto, vosso amor deve ser dado ao Supremo, que nunca morre nem se altera, e é o oceano em cujo
amor não há fluxo nem refluxo. O amor deve ir para seu destino certo, deve ir para Ele, que é, realmente, o
infinito oceano de amor. Todos os rios fluem para o oceano. Mesmo a gota de água que desce do flanco da
montanha não pode cessar sua caminhada quando alcança um regato ou um rio, por muito grande que seja.
Por fim, mesmo essa gota encontrará de alguma forma seu caminho para o oceano.
Deus é a meta de todas as nossas paixões e emoções. Se quereis encolerizar-vos, encolerizai-vos com Ele.
Censurai vosso Bem--amado, censurai vosso amigo. Quem mais podereis censurar com segurança?
Nenhum homem mortal suportaria pacientemente vossa cólera, e haveria uma reação. Se vos encolerizais
contra mim, estou certo de que reagirei rapidamente, porque não posso suportar com paciência a vossa
cólera. Dizei ao Bem-amado: "Por que não vindes a mim? Por que me deixais assim sozinho?" Onde há
prazer, a não ser n'Ele? Que prazer pode haver nos pequenos torrões de terra? Devemos procurar a
essência cristalizada do infinito prazer, que é Deus. Que nossas paixões e emoções subam até Ele. Foram
feitas para Ele, porque, se falharem no ir de encontro ao seu destino e se dirigirem para baixo, tomam-se
vis. Quando vão direito para o seu destino, para o Senhor, mesmo a mais baixa delas se transfigura. Todas
as energias do corpo e da mente, como quer que se expressem, têm o Senhor como seu destino único.
Todos os amores e todas as paixões do coração humano devem dirigir-se para Deus. Ele é o Bem-amado.
A quem mais este coração pode amar? Ele é o mais belo, o mais sublime. Ele é a própria beleza, a própria
sublimidade. Quem, neste universo, é mais belo que Ele? Quem neste universo é mais adequado que Ele
para ser o esposo? Quem no universo é mais adequado que Ele para ser querido? Portanto, seja Ele o
esposo, seja Ele o Bem-amado.
Sim, o verdadeiro amante espiritual não descansa mesmo ali; mesmo o amor de esposo e esposa não é
bastante alucinante para ele. Aos bhaktas não repugna também a idéia do amor ilegítimo, por ser tão forte.
A sua impiedade é coisa de que não cogitam. A natureza do amor é tal que quanto mais obstruções houver
ao seu livre jogo, mais apaixonante se torna. O amor entre marido e mulher é suave, sem obstruções.
Assim, os bhaktas tipificam a moça que ama seu próprio bem-amado, e sua mãe e pai, ou esposo, fazem
objeções a tal amor, e quanto mais alguém obste o curso de seu amor, tanto mais ele tende a intensificarse.
A linguagem humana não pode descrever quanto Krishna, nos bosques de Brindaban, foi loucamente
amado; quanto, ao som de sua voz, as sempre abençoadas gopis21 corriam ao seu encontro, esquecendo
tudo, este mundo e seus entraves, seus deveres, suas alegrias e suas dores.
Homem, 6 homem! Falais de amor divino e ao mesmo tempo sois capaz de atender a todas as vaidades
deste mundo. Sois sincero? "Onde Rama está, não há lugar para desejo algum. Onde o desejo está, não há
lugar para Rama! Tais coisas jamais coexistem. Como a luz e as trevas, nunca estão juntas."
Quinta parte
Só esta bendita loucura de amor divino pode curar para sempre a doença do mundo que esta em nós. Quando se atinge o mais alto ideal de amor, a filosofia é expulsa. Quem se importará com ela? Liberdade, salvação, nirvana - tudo é expulso. Quem se importa de tornar-se livre enquanto no gozo do amor divino? "Senhor, eu não desejo riquezas, nem amigos, nem beleza, nem conhecimentos, nem mesmo liberdade. Fazei-me nascer muitas e muitas vezes, e sê sempre o meu amor. Sê sempre o meu amor.- "Quem quer tornar-se açúcar?" - diz o bhakta. "Desejo provar o açúcar." Quem, pois, desejará tornar--se livre o uno com Deus? -Possosaber que sou Ele, e contudo d'Ele me afastarei e me tornarei diferente, afim de poder gozar do Bem-amado." Isso é o que diz o bhakta. Amar por causa do amor é o seu maior deleite. Quem não se deixaria prender, de pés e mãos, mil vezes, para se deleitar no Bem-amado?
21 Na mitologia hinduísta são as pastoras, companheiras de folguedos de Krishna, entre as quaís se encontrava sua esposa Radha.
Ao bhakta nada interessa, exceto amar e ser amado. Seu amor extraterreno é como a maré subindo o rio. Esse amante sobe o rio, contra a correnteza. O mundo chama-o de louco. Conheço um que o mundo costumava chamar de louco, e esta era a sua resposta: Meus amigos, o mundo inteiro é um hospício. Uns são loucos pelo amor mundano, e outros pelo nome, uns pela fama, e outros por dinheiro, uns pela salvação, e outros para ir ao céu. Nesse grande hospício, também eu sou louco; sou louco por Deus. Se sois loucos por dinheiro, eu sou louco por Deus. Sois loucos; eu sou louco. E penso ser a minha loucura, afinal, a melhor". O amor do verdadeiro bhakta é esta ardente loucura, ante a qual tudo o mais se lhe
desvanece. Todo o universo está, para ele, cheio de amor, e de amor apenas. Assim parece ao amante. Portanto, quando um homem tem esse amor em si, torna-se bem-aventurado para sempre, eternamente feliz. Só essa bendita loucura de amor divino pode curar para sempre a doença do mundo que existe em nós. Com o desejo, desvaneceu-se o egoísmo. Ele se aproximou de Deus, e expulsou todos os vãos desejos de que antes estava repleto.
Todos temos de começar como dualistas na religião do amor. Deus é, para nós, um ser separado, e nos sentimos também como seres separados. Então o amor intervém, e o homem começa a aproximar-se de Deus. Deus também começa a estar mais perto do homem. O homem experimenta todas as relações da vida - como pai, como mãe, como filho, como amigo, como senhor, como amante - e projeta-as em seu ideal de amor, em seu Deus. Para ele Deus existe sob aquelas manifestações. E o ápice do progresso é atingido quando ele sente que se tornou absolutamente imerso no objeto do seu culto.
Todos começamos com o amor por nós mesmos, e as solicitações incorretas do eu inferior tornam egoísta o próprio amor. Por fim, entretanto, vem o fulgor integral da luz, na qual se vê este eu inferior unificar-se com o Infinito. O homem se transfigura na presença desta luz de amor, e compreende, finalmente, a bela e inspiradora verdade de que o amor, o amante, e o amado são um só.
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