Vivekananda - Jñana Yoga
Jñana Yoga
Jñana Yoga
Swami Vivekananda
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PREFÁCIO
O Hinduísmo, que é a religião mais completa do mundo, pela universalidade de sua estrutura ético-filosófica e amplitude de seu estrito de união e tolerância, oferece a seus adeptos quatro caminhos (Margas) fundamentais de libertação individual, mais conhecida entre os cristãos como salvação. São denominados Karma-marga, a caminho da ação ou das obras; Jnana-marga, o caminho do conhecimento; Bhakfi-marga, o caminho da devoção ou amor a Deus, e Dhyana-marga, o caminho da meditação, Marga também se aplica como sinônimo de Yoga, termo mais em voga no Ocidente, e mais generalizado na Índia para designar uma de suas seis escolas filosófica(4) fundada pelo famoso Rishi Patanjali.
Uma das características notáveis do Hinduísmo, e que geralmente se considera uma das principais responsáveis pela longa sobrevivência dessa religião milenar, é a ampla liberdade intelectual que outorga a seus adeptos em matéria de crença ou mesmo descrença numa Divindade Suprema, que todavia ali se considera imanente em toda a natureza. Nessa conformidade, o hinduísta tem plena liberdade de pensar, contanto que sua conduta seja ortodoxamente hinduísta em seus princípios fundamentais. Daí suas seis escolas filosóficas, das quais três baseadas no Espírito e três na Matéria, porém todas visando o aperfeiçoamento individual através da auto-realização. Daí os seus quatro Margas ou métodos individuais de auto-aperfeiçoamento. Daí também o seu sistema de castas, hoje anacrônico e quase obsoleto ali, porém que em passado remoto teve sua motivação, para efeito de educação, preparação e integração social. São as castas dosBrâmanes, os sacerdotes e instrutores; dos Kshatriyas, os militares e estadistas; os Vaishyas, os comerciantes e agricultores; e os Rudras, os servidores ou artesãos. Essa divisão ainda hoje subsiste em todo o mundo e em toda a sociedade, porém sem a rigidez de outrora. Swami Vivekananda, brilhante expoente da escola filosófica Vedanta, uma das seis e a mais elevada do sistema hindu, é um magnífico expositor da cultura hinduísta. E sabe fazê-lo com extraordinária maestria de quem vive e domina perfeitamente o assunto, e num estilo elegante, claro e enriquecido de ilustrações com exemplos os mais oportunos e sugestivos. Nesta obra ele expõe sinteticamente esses famosos quatro caminhos ou métodos de auto-aperfeiçoamento, numa linguagem ao alcance de todos, de sorte que todos possam estudá-los, e uns poucos, os mais práticos ou decididos, possam experimentá-los e adotar aquele que melhor lhes convenha, consoante sua natureza e tempo disponível.
Por certo os métodos não são iguais entre si, pois visam sobretudo a natureza do indivíduo, e suas necessidades e possibilidades. Os métodos do conhecimento e domínio da mente exigem mais estudos e meditação, ao passo que os métodos do serviço altruísta e amor a Deus requerem mais prática do que teoria. Os exercícios específicos de cada um deles variam, porém é a mesma a finalidade de todos eles: levar o estudante e o praticante a um estado de libertação que se lhe traduz em paz e felicidade como também o preparam e fortalecem para enfrentar os momentos mais cruciais de sua vida. Um ponto, porém, o autor procura tornar bem claro: é que se os métodos diferem, não divergem entre si, mas, antes, completam-se e auxiliam-se em alguns pontos e circunstâncias da vida E isso é muito lógico, pois não pode haver teoria eficaz sem a colaboração e comprovação da prática, nem prática inteligente se divorciada de estudos o meditação. Há, portanto, uma mútua interdependência, e se houver uma conjugação da teoria com a prática, os meios se tornarão mais fáceis e os resultados mais rápidos e seguros.
Tal é o escopo desta síntese, que é um real compêndio de auto-realização místico-filosófica posto a serviço dos que aspiram aprofundar a solução de seus problemas internos, e assim experimentar e estabelecer em si aquela "paz que ultrapassa o entendimento"", de que tanto nos têm falado os místicos e yogues.
Auto-realização através do conhecimento (Jñana-Yoga)
Primeiro, a meditação deve ser de natureza negativa. Pensai em tudo e analisai tudo quanto vier à mente pela pura ação da vontade. A seguir, analisai o que realmente somos - Existência, Conhecimento, e Bem-aventurança - Ser, Saber e Amar. A meditação é o meio de unificação do sujeito com o objeto. Meditai: Acima está cheio de mim, abaixo está cheio de mim, no meio está cheio de mim. Eu estou em todos os seres, todos os seres estão em mim Om Tat Sat, Eu sou Isso. Eu sou a existência acima da mente Sou uno com o Espírito do Universo. Não sou prazer nem dor. O corpo bebe, come, e tudo o mais, Eu não sou o corpo. Não sou a mente. Sou Ele. Eu sou a testemunha. Eu olho. Quando vem a saúde eu sou a testemunha. Quando vem a doença eu sou a testemunha. Eu sou Existência, Conhecimento, Bem-aventurança. Eu sou a essência e o néctar do conhecimento. Através da eternidade eu não me modifico. Sou calmo, resplandecente, imutável.
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Primeira parte
Assim, o homem, depois de suas buscas vãs de vários deuses, completa o ciclo e descobre que ,o Deus imaginado por ele como sentado no céu, governando o mundo, é seu próprio Eu. Nenhum outro, a não ser o Eu, era Deus, e o Pequeno "eu" jamais existiu. Desde os tempos mais recuados houve várias seitas espalha das pela índia, e, como nunca existiu uma igreja formulada ou reconhecida, ou corporação de homens para designar em cada escola doutrinas sobre o que se deveria acreditar, as pessoas tinham liberdade de escolher suas próprias fórmulas, fazer sua própria filosofia e estabelecer suas próprias seitas.
A primeira escola de que vos falarei é chamada escola dualística. Os dualistas acreditam que Deus, Criador e Governador do universo, está eternamente separado da natureza, eternamente separado da alma humana. Deus é eterno, a natureza é eterna, e eternas são todas as almas. A natureza e as almas manifestam-se e mudam, mas Deus permanece o mesmo. Segundo os dualistas, Deus é pessoal, pelo fato de ter qualidades, não por ter um corpo. Tem atributos humanos. É misericordioso, justo, poderoso, onipotente; podemo-nos nos aproximar d'Ele, orar para Ele, amá-Lo. Ele retribui o amor, e assim por diante.
Numa palavra, é um Deus humano, apenas infinitamente maior do que o homem, sem qualquer dos defeitos que o homem tem. Não pode criar sem materiais, e a natureza é o material do qual Ele se serve para criar todo o universo.
A vasta massa do povo da índia é dualista. Todas as religiões da Europa e da Ásia Ocidental são dualistas: têm de ser dualistas. O homem comum não pode pensar em coisa alguma que não seja concreta. Gosta, naturalmente, de agarrar-se ao que o seu intelecto apreende. Essa é a religião das massas, em todo o mundo. Acreditam num Deus inteiramente separado delas, um grande rei, um poderoso monarca, por assim dizer. Ao mesmo tempo, fazem-no mais puro do que os monarcas de Terra; dão-lhe todas as boas qualidades e removem dele todos os defeitos, como se fosse possível o bem existir sem o mal, ou qualquer concepção de luz sem a concepção das trevas!
Eis a primeira dificuldade no que se refere às teorias dualísticas: como é possível que sob a direção de um Deus justo e misericordioso haja tantos males no mundo? Essa pergunta se ergue em todas as religiões dualísticas, mas os hindus jamais inventaram Satã para dar uma resposta a tal indagação. Os hindus concordam em lançar a culpa sobre o homem, e é fácil para eles fazer isso. Por quê? Porque não acreditam que as almas tivessem sido criadas do nada.
Vemos, nesta vida, que podemos modelar e formar nosso futuro. Cada um de nós, todos os dias, está tentando modelar o amanhã. Hoje, fixamos o destino do amanhã; amanhã fixaremos o destino do dia seguinte, e assim por diante. É bastante lógico que esse raciocínio seja empregado também para o tempo pregresso. Se pelas nossas ações modelamos nosso destino no futuro, por que não aplicar a mesma regra ao passado? Se, numa corrente infinita, um certo número de elos são alternadamente repetidos, e se um desses grupos de elos pode ser explicado, poderemos explicar toda a cadeia. Assim, nessa infinita extensão de tempo, se podemos secionar uma porção dele, e explicá-lo, e compreender essa porção, podemos, se é verdade ser a natureza uniforme, dar a mesma explicação à toda a corrente de tempo. Se é verdade que estamos trabalhando nosso própria destino, aqui, neste pequeno espaço de tempo, se é verdade que tudo deve ter uma causa, como vemos agora - deve ser verdade, também, que o que somos agora é o efeito de todo o nosso passado. Portanto, não se faz necessário ninguém para modelar o destino da humanidade, a não ser o homem. Os males existentes no mundo são causados somente por nós mesmos. Nós causamos todos esses males, e assim como estamos constantemente vendo o sofrimento como resultante de más ações, podemos ver que nunca da angústia existente no mundo é efeito da maldade passada do homem. Só o homem, portanto, de acordo com esta teoria, é responsável. Deus não deve ser culpado. Ele, o Pai eternamente misericordioso, não deve absolutamente ser culpado. "Colhemos o que semeamos.
Outra doutrina dos dualistas diz que todas as almas devem, finalmente, alcançar a salvação. Nenhuma delas ficará do lado de fora. Através de várias vicissitudes, através de vários sofrimentos e prazeres, cada uma delas sairá, por fim. Sairá de quê? A idéia comum é a de que todas as almas têm de sair deste universo. Nem o universo que vemos e sentimos, nem mesmo um universo imaginário, podem ser o certo, o verdadeiro, porque ambos estão mesclados com o bem e o mal. Segundo os dualistas, há, para além deste universo, um lugar cheio de felicidade e de bem, apenas, e quando esse lugar for alcançado, não haverá mais necessidade de nascer e renascer, de viver e morrer, e essa idéia lhes é muito cara. Ali não há mais doenças, não há morte. Existirá uma felicidade eterna, e eles estarão na presença de Deus todo o tempo, e gozarão essa presença para sempre. Acreditam que todos os seres, do verme mais baixo até os mais altos anjos e deuses, atingirão, mais cedo ou mais tarde, o mundo onde não mais haverá sofrimento. Mas nosso mundo jamais terminará. Continuará a existir infinitamente, embora movendo-se em ondas. Embora movendo-se em ciclos, jamais terminará. O número de almas que devem ser salvas, que devem ser aperfeiçoadas, é infinito.
A verdadeira filosofia Vedanta começa com os que são conhecidos como não-dualistas qualificados. Declaram eles que o efeito jamais difere da causa; que o efeito é a causa reproduzida sob outra forma. Se o universo é o efeito e Deus é a causa, o universo deve ser o próprio Deus; não pode ser senão isso. Começam eles com a afirmativa de que Deus é, ao mesmo tempo, a causa eficiente do universo e seu Criador, e, ainda, o material do qual se projetou toda a natureza. A palavra "criação" de vossa língua, não tem equivalente em sânscrito, porque não há seita, na índia, que acredite na criação, tal como ela é vista no Ocidente, isto é, algo que veio do nada. O que entendemos por criação é a projeção do que já existia. Bem: o universo inteiro, de acordo com esta seita, é o próprio Deus. Ele é o material do universo. Lemos nos Vedas(1):
"Assim como a aranha tece a linha tirada de seu próprio corpo, todo o universo, da mesma maneira, vem daquele Ser". Se o efeito é a causa reproduzida, a questão é a seguinte: como podemos achar que este universo ininteligente, bronco, material, foi produzido por um Deus que não é material, mas é inteligência eterna? Como, se a causa é pura e perfeita, o efeito pode ser tão diferente? Que dizem esses não dualistas qualificados? A teoria deles é muito peculiar. Dizem que os três - Deus, natureza e a alma - são um. Deus é, por assim dizer, a alma, e a natureza, e as almas são o corpo de Deus. Tal como eu tenho um corpo e uma alma, todo o universo e todas as almas são o corpo de Deus, e Deus é a Alma das almas. Assim, Deus é a causa material do universo. O corpo pode ser modificado - pode ser jovem ou velho, forte ou fraco - mas isso em nada afeta a alma. É a mesma existência eterna, manifestando-se através do corpo. Corpos vêm e vão, mas a alma não muda. Mesmo assim o universo inteiro é o corpo de Deus, e nesse sentido é Deus. Mas a mudança do universo não afeta Deus. Desse material Ele cria o universo, e ao fim de um ciclo Seu corpo se torna mais fino, contrai-se, e no início de outro ciclo torna-se novamente expandido, e dele emanam todos esses mundos diferentes.
Ora, tanto os dualistas como os não-dualistas qualificados, admitem que a alma é, por sua natureza, pura, mas, através de suas próprias ações, torna-se impura. Os não-dualistas qualificados expressam isso de uma forma mais bela do que os dualistas, dizendo que a pureza e a perfeição da alma se contraem e de novo se manifestam, e que o que estamos tentando fazer agora é a remanifestação da inteligência, da pureza e do poder que são naturais à alma. Cada má ação contrai a natureza da alma, e toda a boa ação a expande. E essas almas são, todas, parte de Deus. "Assim como do fogo violento voam milhares de faíscas da mesma. natureza, desse Ser infinito, de Deus, essas almas vieram."
Todas têm o mesmo objetivo. O Deus dos não-dualistas; qualificados é também um Deus pessoal, só que interpenetra tudo no universo. É imanente em tudo e está em toda a parte, e quando as Escrituras dizem que Deus é tudo querem dizer que Deus interpenetra tudo, não que Deus se tornou uma parede ou que
Deus está na parede. Não há uma partícula, não há um átomo do universo onde Ele não esteja. As almas são limitadas, não têm onipresença. Quando conseguem a expansão de seus poderes e tornam-se perfeitas, não há mais nascimento nem morte para elas, mas vivem em Deus para sempre.
Chegamos agora ao Advaitismo, a última e - assim a consideramos - mais bela flor da filosofia e da religião que qualquer país e em qualquer tempo já produziu, quando o pensamento humano atinge sua expressão mais alta, e vai mesmo além do mistério que parece ser impenetrável. É a Vedanta não-dualística. É demasiado complexa, demasiado elevada, para ser religião das massas. Mesmo na Índia, seu berço natal, onde tem governado, suprema, pelos três últimos milênios, não conseguiu permear as massas.
Conforme continuamos, verificaremos o quanto é difícil mesmo para o homem ou a mulher mais considerados de qualquer país o compreender o advaítísmo - pois nos fizemos tão fracos, pois nos fizemos tio baixos. Quantas vezes me pediram uma "religião que conforte"! Poucos são os homens que pedem a verdade, menor número ainda ousa estudar a verdade, e ainda mais insignificante é o total dos que ousam segui-la em todas as suas significações práticas. Não é culpa deles. Não passa de fraqueza do cérebro.
Qualquer pensamento novo, especialmente de alta qualidade, cria uma perturbação, tenta fazer um novo canal, por assim dizer, na matéria cerebral, e isso desengonça o sistema, retira aos homens o seu equilíbrio. Estão habituados a certo ambiente e precisam dominar a massa imensa de velhas superstições, superstições ancestrais, superstições de classe, superstições da cidade, superstições do país, e, além de tudo, a vasta massa de superstições inata a todo o ser humano. Ainda assim há algumas almas corajosas neste mundo, que ousam conceber a verdade, que ousam recebê-la, e que ousam segui-la até o fim.
Que declaram os advaitistas? O seguinte: Se há um Deus, esse Deus deve ser ao mesmo tempo a causa material e eficiente do universo. Não só é o Criador, mas é também o criado. Ele próprio é este universo. Como pode ser isso? Deus, o puro, o espírito, tornou-se universo? Sim, aparentemente é assim. Aquilo que todas as pessoas ignorantes vêem como universo, não existe, realmente. Que somos, vós e eu, e todas as coisas que vemos? Simples auto-hipnotismo. Não há senão uma Existência, a infinita, a sempre abençoada. Nessa Existência sonhamos todos esses vários sonhos. É o Atman (2) para além de tudo, o infinito, para além do conhecido, para além do conhecível, e através disso vemos o universo. Essa é a única
realidade. Ela é esta mesa, é a parede, é tudo, menos o nome e a forma. Retirai a forma da mesa, retirai-lhe o nome, e o que permanecer será a mesa. O vedantista não diz "ele" ou "ela", pois essas são ilusões, ficções do cérebro humano. Não há sexo na alma. As pessoas que estão sob a ilusão, que se tornaram como que animais, vêem a mulher ou o homem. Deuses vivos não vêem homens nem mulheres. Como podem vê-los, eles que estão para além de tudo que tenha idéia de sexo? Tudo e todos são Atman, o Eu-assexuado, puro, sempre abençoado. O nome, a forma, o corpo, é que são materiais, e fazem toda essa diferença. Se retirardes essas duas diferenças de nome e forma, todo o universo é um. Não há dois, mas um por toda a parte. Vós e eu somos um. Não há natureza, nem Deus, nem universo - apenas uma Existência infinita, da qual, através de nome e de forma, todas essas coisas são manufaturadas.
Como conhecer o Conhecedor? Ele não pode ser conhecido. Como podeis ver vosso próprio Eu? Só podeis refletir vós mesmos. Assim, todo este universo é o reflexo desse ser eterno, o Atman, e como o reflexo sombra sobre bons ou maus refletores, também imagens boas ou más são adicionadas. Assim, no assassino o refletor é mau, e não o Eu. No santo o refletor é puro. O Eu, o Alman, é, por sua própria natureza, puro. É a mesma, a única Existência do universo, que se reflete desde o mais baixo verme até o mais alto e mais perfeito dos seres. O todo deste universo é uma unidade, uma Existência, fisicamente, mentalmente, moralmente, e espiritualmente. Estamos considerando essa Existência única em diferentes formas e criando todas essas imagens sobre Ela. Para o ser que se limitou às condições de homem, Ela aparece como o mundo do homem. Para o ser que está em plano mais alto de existência, Ela pode parecer como o céu. Há apenas uma alma no universo, não duas. Não vem, nem vai. Não nasce, não morre, não se reencarna. Como pode morrer? Para onde pode ir? Todos esses céus, todas essas terras, são vãs imaginações da mente. Não existem, jamais existiram no passado, e jamais existirão no futuro. Eu sou onipresente, eterno. Para onde posso ir? Onde ainda não estou desde já? Estou lendo este livro da natureza. Página por página estou terminando-o, e voltando-as, e um por um os sonhos da vida se vão. Outra página da vida foi voltada, outro sonho da vida chega, e vai, rolando, rolando. E quando eu tiver terminado minha leitura, abandono-a e ponho-me de lado. Atiro fora o livro, e tudo estará terminado.
Que pregam os advaitistas? Destronam todos os deuses que já existiram ou existirão no universo, e colocam naquele trono o Eu do homem, o Atman, maior do que o Sol e a Lua, mais alto do que os céus, maior do que este próprio grande universo. Nenhum livro, nem escrituras, nem ciência, podem jamais imaginar a glória do Eu que aparece como homem - o Deus mais glorioso que já existiu, o único Deus que já existiu, existe, ou jamais existirá.
Devo adorar, portanto, apenas o meu Eu. "Eu cultuo o meu Eu" - diz o advaitista. "Diante de quem devo me curvar? Eu saúdo o meu Eu. A quem devo pedir auxílio? Quem pode me ajudar, a mim, o Ser Infinito do universo?" Esses são sonhos aloucados, alucinações. Quem jamais ajudou alguém? Ninguém Onde virdes um homem fraco, um dualista, chorando e gemendo por auxílio vindo de algures, de cima dos céus, é porque ele não sabe que os céus também estão nele. Deseja auxílio dos céus, e o auxílio vem. Vemos que vem, mas vem de dentro dele próprio, e ele se engana supondo que vem de fora. Às vezes, um doente jaz no leito e pode ouvir que batem à porta. Levanta-se, abre, e vê que ali não há ninguém. Volta ao leito e de novo ouve que batem. Levanta-se e abre a porta. Ninguém ali está. Por fim descobre que eram as pancadas
de seu próprio coração que lhe pareciam pancadas na porta.
Assim o homem, depois de procurar em vão os vários deuses fora de si próprio, completa o ciclo e volta ao ponto do qual iniciou sua busca - a alma humana. E descobre que aquele Deus procurado sobre montes e vales, que buscava encontrar em cada livro, em cada templo, nas igrejas e nos céus, aquele Deus que ele imaginava sentado no paraíso, a governar o mundo, era seu próprio Eu. Eu sou Ele, e Ele é Eu. Só Eu era Deus e o pequeno "eu" jamais existiu.
Entretanto, como pode iludir-se esse perfeito Deus? Nunca o foi. Como poderia um deus perfeito estar sonhando? Nunca sonhou. A verdade jamais sonha. A própria indagação de onde surgiu essa ilusão é absurda. A ilusão surge apenas da ilusão. Não haverá ilusão desde que a verdade seja vista. A ilusão sempre repousa na ilusão, jamais repousa em Deus, na Verdade, no Atman jamais estais em ilusão, é a ilusão que está em vós, diante de vós. Uma nuvem aqui está. Outra vem, expulsa a primeira e toma o seu lugar. Vem uma terceira, que por sua vez expulsa essa. Assim como diante do céu eternamente azul nuvens de várias tonalidades e colorações surgem, permanecem por um pequeno espaço de tempo, e desaparecem, deixando o mesmo e eterno azul, vós sois, eternamente, puros, perfeitos. Sois os verdadeiros Deuses do universo. Não, não há dois, só há um. É um engano dizer "vós" e "eu". Sou eu quem está comendo através de milhões de bocas. Portanto, como posso ter fome? Sou eu quem trabalha através de um número infinito de mãos. Como posso estar inativo? Sou eu quem vive a vida de todo o universo. Onde está a morte para mim? Eu estou acolá da vida, acolá de toda a morte. Onde procurarei a liberdade, se sou livre por minha natureza? Quem pode constranger-me, a mim, o Deus do universo? As escrituras do mundo não passam de pequenos mapas, desejando delinear a minha glória, pois sou a única existência do universo. Então, que representam esses livros para mim? Assim fala o advaitista (3).
"Conhece a verdade e liberta-te num momento. Toda a treva desaparecerá, então. Quando o homem se tiver visto como um com o Ser infinito do universo, quando toda a separação cessar, quando todos os homens e mulheres, todos os deuses e anjos, todos os animais e plantas, e todo o universo, se tiverem desvanecido nessa Unidade, então o medo desaparecerá. Posso magoar-me? Posso matar-me? Posso injuriar-me? A quem posso temer? Podeis temer a vós mesmos? Então, todo o desgosto desaparecerá. Quem me pode causar desgosto? Eu sou a Existência única do universo. Então, todos os ciúmes desaparecerão. De quem terei ciúmes? De mim próprio? Então, todos os maus sentimentos desaparecerão. Contra quem terei maus sentimentos? Contra mim mesmo? Não há ninguém no universo a não ser eu.
Esse é o único caminho, dizem os vedantistas, para o conhecimento. Matai as diferenciações, matai essa superstição de que existem muitos. "O que está neste mundo de muitos, vê aquele Único. O que está nesta massa de inconsciência, vê aquele único Ser consciente. Quem está neste mundo de sombras, aprende aquela Realidade - e nela está a paz eterna e em ninguém mais, "em ninguém mais."
São esses os pontos principais dos três passos que o pensamento religioso hindu tomou em relação a Deus. Vimos que ele começou com um Deus pessoal, extracósmico. Foi do Deus externo para o Deus imaneme no universo. E terminou identificando a própria alma com aquele Deus, e fazendo uma Alma, uma unidade, de todas essas várias manifestações do universo. Esta é a última palavra dos Vedas. O pensamento religioso hindu começa com o dualismo, passa através do não-dualismo qualificado, e termina em perfeito não-dualismo.
Sabemos que poucos neste mundo podem chegar a este último ponto, ou mesmo podem ter a ousadia de acreditar nele. Menor é o número dos que ousam agir de acordo com ele. Entretanto, sabemos que nele está a explicação para toda a ética, para toda a moralidade, para toda a espiritualidade do universo. Por que dizem todos: "Fazei bem aos outros?" Onde está a explicação ? Por que todos os grandes homens pregaram a fraternidade da humanidade, e outros maiores pregaram a fraternidade de todas as vidas?
Porque, fossem ou não fossem conscientes disso, para além de tudo, através de todas as suas irracionais superstições pessoais, estavam fitando diante de si a eterna luz do Eu, negando todas as multiplicidades, e afirmando que todo o universo não passa de Um.
Assim, a última palavra nos deu um universo, que vemos, através dos sentidos, como matéria, através do intelecto como alma, e através do espírito como Deus. Para o homem que se envolve em véus, os véus que o mundo chama perversidade e mal, esse mesmo universo mudará e se transformará num lugar hediondo. Para outro homem, que deseja prazeres, esse mesmo universo se modificará e se tornará um céu. E para o homem perfeito tudo desaparecerá, e se tornará seu próprio Eu. Bem: tal como a sociedade existe no tempo presente, todos esses três estágios são necessários. Uma absolutamente não nega o outro, antes é, simplesmente, a complementação do outro. O advaitista, ou o advaitista qualificado, não diz que esse dualismo é errado: é uma visão certa, mas inferior. Está a caminho da verdade. Portanto, que cada qual tenha sua própria visão deste universo, de acordo com suas próprias idéias. Não injurieis ninguém, não negueis a posição de ninguém. Tomai o homem como ele é, e, se puderdes, dai-lhe mão de auxílio e colocai-o em plataforma mais alta. Mas não o injurieis nem destruiais. Todos chegarão à verdade, com o correr do tempo. "Quando todos os desejos do coração forem dominados, esse mesmo mortal se tornará imortal." Então, o mesmo homem se tornará Deus.
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(1) Vedas: A palavra Veda, derivada da raiz sânscrita vid, conhecer, significa "suma do conhecimento” ou,segundo outra etimologia, "o conhecimento que em si mesmo contém a evidência da verdade% isto é, a "revelação". O conjunto dos ensinamentos hinduís. tas estão nos quatro Vedas principais: o Rig, o Iajur, o Sama, e o Atarva Veda. Não é fácil determinar a antiguidade dessas escritu-ras, mas é provável que os hinos originais do Rig-Veda remontem a uns dez mil anos antes de Cristo, sendo compilados no ano 4000 da era anterior ao Cristianismo.
(2) Atman: Palavra da terminologia sânscrita, Alma Universal, Erfergia divina, que anima o ser do homem como o Sol anima a Terra. O Logos, no qual todas as coisas estão, e todos os seres do universo procedem. Deus onisciente, onipresente e onipotente.
(3) Advaitista: Membro da escola filosófica da India, derivada de Vedanta e fundada por Sankara. Segundo os advaitistas, os princípios constitutivos do homem são: 1. rupa, ou corpo físico; 2.O jiva, prana, ou fôrça vital; 3.O linga sharíra, ou corpo astral; 4." kama rupa, ou alma animal; 5. O manas, ou alma humana; 6." budditi, ou alma espiritual; .1 Atman, ou espírito.
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Segunda parte
Essa é a única forma de alcançar a meta, dizer a nós próprios e dizer a todos os demais, que somos divinos. E, conforme repetirmos isso, a força virá.
Embora todos os sistemas concordem em que tivemos o império e o perdemos, dão-nos conselhos vários quanto à forma de o reavermos. Um diz que devemos realizar certas cerimônias, pagar certas somas em dinheiro a certos ídolos, comer certa qualidade de comida, viver de maneira especial, e assim reaveremos o império. Outro diz que devemos chorar e nos prostrar e pedir perdão a certo Ser que está para além da natureza, e assim reaveremos o império. E ainda outro diz que se amarmos aquele Ser como todo o nosso coração, reaveremos o império.
Mas o último e o maior conselho diz que não deveis absolutamente chorar. Não precisais realizar todas essas cerimônias nem tomar conhecimento de como reaver o vosso império porque jamais o perdestes. Por que deveríeis procurar o que jamais perdestes ? Sois puros desde já, desde já sois livres. Se pensais que sois livres, livres sereis neste momento, e se pensais que estais aprisionados, aprisionados estareis.
Essa é uma declaração muito atrevida. Pode assustar-vos agora, mas quando pensardes nela e a compreenderdes em vossa própria vida, então sabereis que o que eu digo é verdade. Porque, supondo que a liberdade não é a vossa natureza, não há forma alguma de vos tornardes livres. Supondo que sois livres e que de certa forma perdestes essa liberdade, isso mostra que não éreis livres no começo. Se tivésseis sido livres, o que poderia levar-vos a perder essa liberdade? O independente jamais se pode tornar dependente. Se é realmente dependente, sua independência era uma alucinação.
Dos dois lados, qual escolhereis, então? Se dizeis que a alma era por sua natureza pura e livre, segue-se, naturalmente, que nada no universo poderia torná-la aprisionada ou limitada. Mas se havia algo na natureza que podia aprisionar a alma, segue-se, naturalmente, que ela não era livre, e vossa declaração de que ela era livre não passava de uma ilusão. Assim, se nos é possível alcançar a liberdade, a conclusão é inevitável: a alma é livre por sua natureza. Não pode ser de outra maneira.
Liberdade significa independência de tudo quanto é exterior, e significa que nada fora dela própria pode agir sobre ela como causa. A alma é imotivada, e daí seguem todas as grandes idéias que temos. Não podeis estabelecer a imortalidade da alma a não ser que concedais ser ela livre por sua natureza, ou, em outras palavras, que nada pode agir sobre ela, vindo do exterior. Bebo veneno e morro, assim mostrando que meu corpo pode receber a ação de algo externo que se chama veneno. Mas se é verdade que a alma é livre segue-se, naturalmente, que nada pode afetá-la e ela jamais pode morrer. Liberdade, imortalidade, bemaventurança, tudo isso depende de estar a alma para além da lei de causação, para além de maya (4).
Das duas opiniões, qual escolhereis? Ou fazeis da primeira uma ilusão ou fazeis da segunda uma ilusão. Eu farei da segunda, com certeza, uma ilusão. É mais conforme com todos os meus sentimentos e aspirações. Estou perfeitamente consciente de ser livre por natureza, e não admitirei que esta prisão é verdadeira e minha liberdade uma ilusão.
Tal discussão aparece em todas as filosofias, de uma forma ou de outra. Mesmo nas mais modernas filosofias encontramos essa mesma discussão. Há dois partidos. Um diz que não existe alma, que a idéia da alma é uma ilusão causada pela repetida mudança de partículas de matéria, produzindo a combinação que chamais corpo ou cérebro. Que a impressão de liberdade é o resultado das vibrações, movimentos, e contínuas modificações dessas partículas. Há seitas budistas que mantêm o mesmo ponto de vista e ilustram-no com um exemplo: "se tomardes uma tocha e a fizerdes girar rapidamente, haverá um círculo de luz. Esse círculo realmente não existe, porque a tocha está mudando de lugar a cada momento. Não somos senão feixes de pequenas partículas, que em seu rápido rodopiar produzem a ilusão de uma alma permanente. O outro partido declara que na rápida sucessão dos pensamentos a matéria ocorre como ilusão, e não existe, realmente.
Assim, vemos de um lado a declaração de que o espírito é uma ilusão e do outro afirmativa de que a matéria é uma ilusão. Que lado tomaremos? Evidentemente, tomaremos o espírito e negaremos a matéria. Os argumentos são idênticos para ambos os casos; somente do lado do espírito o argumento é um pouco mais forte. Porque ninguém jamais viu o que é a matéria. Só podemos sentir a nós mesmos, jamais conheci um homem que pudesse sentir a matéria saindo de si próprio. Portanto, o argumento é um pouco mais forte do lado do espírito. Em segundo lugar, a teoria do espírito explica o universo, enquanto o materialismo não o faz. Daí ser ilógica a explicação materialista. Se levardes todas as filosofias à fervura e as analisardes, verificareis que elas ficam reduzidas a uma ou outra dessas duas posições. Portanto, também aqui, sob forma mais intrincada, sob forma mais filosófica, encontramos a mesma questão referente à prisão e à liberdade. Um lado diz que a primeira é uma ilusão, e a outra, que a segunda é uma ilusão. E, naturalmente, ficamos com a segunda, ao acreditarmos que nossa prisão é uma ilusão.
A solução da Vedanta é que não estamos aprisionados, que já somos livres. Não apenas isso, mas dizer ou pensar que somos prisioneiros é perigoso: é um erro, um auto-hipnotismo. Assim que dizeis: "Estou aprisionado, "Sou fraco", "Sou. desamparado", desgraça sobre vós! Prendei-vos a mais uma cadeia. Não digais tais coisas, não pensais tais coisas. Eu soube de um homem que vivia numa floresta e costumava repetir, dia e noite: "Shivobam", "Eu sou o Abençoado". Um dia um tigre caiu sobre ele e o arrastou para matá-lo. As pessoas que estavam do outro lado do rio viram aquilo e ouviram a voz, enquanto a voz nele permaneceu, dizendo: "Shivoham", mesmo entre as próprias fauces do tigre. Tem havido homens assim. Tem havido homens que, mesmo no momento em que estão sendo cortados em pedaços, abençoaram seus inimigos. "Eu sou Ele, Eu sou Ele, e assim és tu. Sou puro e perfeito, e assim são todos os meus inimigos. Vós sois Ele, e assim o sou eu." Essa é a posição de força.
Há coisas grandes e maravilhosas nas religiões dos dualistas. Maravilhosa é a idéia do Deus Pessoal, separado da natureza, que adoramos e amamos. Às vezes essa idéia é bem consoladora. Mas, diz o vedantista, esse consolo é algo como o efeito que vem de um opiato, efeito não natural. Ao fim traz fraqueza, e o que este mundo deseja hoje mais do que nunca, é força. A Vedanta diz que a fraqueza é a causa de toda a angústia do mundo. A fraqueza é a causa única do sofrimento. Tornamo-nos sofredores porque somos fracos. Mentimos, roubamos, matamos, e cometemos outros crimes porque somos fracos.
Onde nada existe para nos enfraquecer, não há morte nem desgosto. Somos infelizes através da ilusão. Abandonemos a ilusão e tudo se desvanecerá. É coisa clara e simples, realmente. Através de todas essas discussões filosóficas e de tremendas ginásticas mentais, chegamos a esta única idéia religiosa, a mais simples em todo o mundo.
Há uma idéia que com freqüência milita contra ela, É a seguinte: está muito bem dizer: "Eu sou Puro, eu sou Abençoado"; mas não posso mostrar sempre isso em minha vida. É verdade. O ideal é sempre muito duro. Toda a criança, ao nascer, vê o céu sobre a sua cabeça, muito longe, mas por isso deveríamos deixar de olhar para o céu? Se não pudermos obter o néctar, resolveríamos a questão bebendo veneno? Será de algum auxílio para nós o fato de, não podendo compreender imediatamente a verdade, entrarmos nas trevas e nos rendermos à fraqueza e à superstição?
Não faço objeções ao dualismo em muitas de suas formas. Gosto da maioria delas, mas faço objeções a todas as formas de ensinamento que inculquem fraqueza. Essa é a única pergunta que faço a cada homem, mulher ou criança que esteja em treinamento físico, mental ou espiritual: "Sois forte? Sentis força?" Porque sei que é só a Verdade que dá a força, sei que só a Verdade dá vida. Nada mais a não ser o caminho para a Realidade nos fará fortes, e ninguém alcançará a Verdade enquanto não for forte. Qualquer sistema que enfraqueça a mente, portanto, que faça a pessoa supersticiosa, apática, desejando toda a sorte de selvagens impossibilidades, mistérios e superstições, não me agrada, pois é perigoso. Tal sistema jamais trará bem algum, pois essas coisas criam morbidez da mente, tornam-na fraca, tão fraca que com o correr do tempo lhe será quase impossível receber a Verdade e viver de acordo com ela.
A força, portanto, é uma coisa imprescindível. Força é o remédio para a doença do mundo. Força é o remédio que o pobre deve ter quando o rico o tiraniza. Força é o remédio que o ignorante deve ter, quando oprimido pelo erudito, e é o remédio que os pecadores devem ter quando tiranizados pelos outros pecadores. E nada dá mais força do que essa idéia do monismo. Nada nos faz mais morais do que essa idéia do monismo. Nada nos faz trabalhar tão bem, da forma melhor e mais alta, do que ter sobre nós tôda a responsabilidade.
Eu vos desafio, um a um. Como vos comportaríeis se eu vos pusesse nas mãos um bebezinho? Toda a vossa vida se modificaria no momento, e fosseis o que fosseis, deveríeis tornar-vos destituídos de egoísmo naquele momento. Abandonaríeis todas as idéias criminosas assim que a responsabilidade fosse atirada sobre vós e vosso caráter se modificaria por inteiro. Assim, se toda a responsabilidade fosse atirada sobre nossos ombros, estaríamos a agir em nosso ponto melhor e mais alto. Quando nada temos para procurar às apalpadelas, nem demônio sobre o qual lançar as culpas, nem Deus Pessoal para carregar nossas cargas, quando só nós somos responsáveis, então nos erguemos até o melhor e o mais alto. "Sou responsável pelo meu destino, sou quem traz o bem para mim próprio, sou quem traz o mal para mim próprio. Sou o Puro e o Abençoado."
Esta, diz a Vedanta, é a única prece que deveríamos ter. Este é o único caminho para alcançar a meta, dizer a nós mesmos e dizer a todos os demais, que somos divinos. E conforme formos repetindo isso, a força virá. O que de início vacila irá se tornando cada vez mais forte, nossa voz aumentará de volume, até que a verdade tome posse de nossos corações e corra através de nossas veias, e impregne nossos corpos.
A ilusão se desvanecerá conforme a luz se torne mais e mais fulgurante, carga e mais carga de ignorância desaparecerão, e então chegará o momento em que tudo o mais terá desaparecido, e só ficará o Sol a cintilar.
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(4) Maya: Palavra sânscrita que significa "ilusão". No corpo do presente livro o próprio Vivekananda oferece a definição correta de maya.
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Terceira parte
É necessária alguma prática para alcançar a Unidade? Positivamente, sim. Essa ilusão que diz serdes vós o Sr. ou a Sra. Fulano de Tal pode desaparecer através de outra ilusão, que a prática. O fogo engolirá o fogo, à podeis usar uma ilusão para dominar outra ilusão.
O Eu, o Conhecedor, o Senhor de tudo, o Ser real, é a causa de toda a visão que existe no universo, mas Lhe é impossível ver a si próprio, exceto através de reflexo. Vós não podeis ver vossa própria face a não ser num espelho, e assim o Eu não pode ver Sua própria natureza enquanto ela não for refletida, e todo este universo, é, portanto, o Eu tentando compreender-se. Esse reflexo é reproduzido primeiro do protoplasma depois de plantas e animais, e assim por diante, cada vez de melhores refletores, até que o melhor refletor - o homem perfeito - é alcançado. Tal como um homem que, desejando ver seu próprio rosto, olha primeiro para uma pequena poça de água lodosa, e apenas vê um contorno, depois vai para a água limpa e vê melhor imagem, e a seguir, diante de um pedaço de metal brilhante vê imagem ainda melhor, para, finalmente, colocando-se diante de um espelho, ver-se tal qual é. Portanto, o homem perfeito é o mais alto reflexo desse Ser, que, ao mesmo tempo, é substância e objeto.
Agora, descobrireis por que o homem instintivamente cultua tudo, e por que o homem perfeito é instintivamente cultuado como Deus em cada país. Podeis dizer o que quiserdes, mas são eles que se destinam a ser cultuados. Por isso os homens cultuam Encarnações, tais como o Cristo ou Buda. Elas são as mais perfeitas manifestações do Eu eterno. Estão muito acima de todas as concepções de Deus que vós e eu podemos fazer. Um homem perfeito é muito maior do que essas concepções. Nele, o círculo se completa, e a substância e o objeto fazem-se um. Nele, as ilusões se desvanecem, e em lugar delas vem a compreensão de que sempre foi aquele Ser perfeito.
Certa vez eu viajava pelo deserto, na Índia. Viajei por mais de um mês, sempre encontrando as mais belas paisagens diante de mim, bonitos lagos, e tudo o mais. Um dia, tendo muita sede, desejei beber a água de um daqueles lagos, mas quando me aproximei, o lago desapareceu. Imediatamente, como uma pancada, veio-me ao cérebro a idéia de que aquilo era a miragem, sobre a qual eu tinha lido toda a minha vida. Então, recordei-me, e sorri da minha loucura: durante o mês que se escoara, todas as belas paisagens e lagos que eu estivera vendo tinham sido miragens, mas eu não sabia distingui-las. Na manhã seguinte eu estava novamente a caminho. Lá estavam o lago e a paisagem, mas com eles me veio imediatamente a idéia: "Isto é miragem". Uma vez conhecida, ela perdera seu poder de me iludir.
Assim, essa ilusão do universo um dia se desvanecerá. Todo ele se desvanecerá, se esfumará. Isso é compreensão. A filosofia não é gracejo ou conversa. Tem de ser compreendida. Este corpo se desvanecerá, esta terra, e tudo com ela, se desvanecerá, esta idéia de que eu sou o corpo ou a mente em algum tempo se desvanecerá. Se okarma (5) terminar, isso desaparecerá, para nunca mais voltar, mas se parte do karma permanecer, o corpo, mesmo depois da ilusão se ter desvanecido, continuará a funcionar durante algum tempo - como o torno do oleiro, que se conserva rodando pelo seu próprio movimento, mesmo depois que a vasilha foi torneada. De novo este mundo virá, homens, mulheres e animais virão, tal como a miragem se repete no dia seguinte, mas não com a mesma força. Com eles virá a idéia de que agora eu conheço a sua natureza, e eles não mais me aprisionarão, não mais produzirão dor, aflição ou angústia. Ao sobrevir qualquer coisa angustiosa, a mente poderá dizer: "Sei que isto é uma alucinação".
Quando um homem alcança esse estado, chamam-no jivanka, "o que vive livre", livre mesmo enquanto vive. A meta e o fim nesta vida, para os jnane-yogues, é tornar-se um jivan-mukia, "o que vive livre". Éjivanmukta o que vive neste mundo sem estar a ele apegado como as folhas do Iótus sobre a água, que jamais se chegam a molhar. É a forma mais alta dos seres humanos, o mais alto de todos os seres, pois compreendeu sua identificação com o Absoluto, compreendeu que é um com Deus.
Que acontecerá ao mundo, então? Que bem faremos ao mundo? Tais perguntas não surgem. "Que se tornará meu bolo de gengibre, quando eu ficar velho?" diz o pequenino. "Que será de minhas bonecas quando eu ficar velha?" - diz a criança. "Que será de minhas bolinhas de gude quando eu ficar velho?" - diz o menino. A pergunta é a mesma com relação a este mundo. Ele não tem existência no passado, no presente ou no futuro. Se tivéssemos conhecido o Atman como é, se tivéssemos sabido que nada existe a não ser o Atman, que tudo o mais não passa de um sonho, sem existência na realidade, então este mundo, com suas pobrezas, suas angústias, suas perversidades e suas bondades, cessaria de nos perturbar. Se tais coisas não existem, por quem e por que teremos transtornos? Isto é o que jnane-yogue ensina.
Antes de entrar na parte prática, cuidaremos de mais uma questão intelectual. Até aqui a lógica tem sido tremendamente rigorosa. Se o homem raciocina, não há lugar onde possa ficar até que chegue a isto: que há somente uma Existência, que tudo o mais nada é. Não há outro ponto de vista para a humanidade racional a não ser esse. Mas como se explica que o que é infinito, sempre perfeito, sempre abençoado, Existência-Conhecimento-Bem-aventurança Absoluta, viesse a ficar sob tais ilusões? É a mesma pergunta que tem sido feita em todo o recanto do mundo. Na forma vulgar a questão é assim proposta: "Como veio ter ao mundo o pecado?" Essa é a forma mais vulgar e sensória da pergunta, e a outra é a forma mais filosófica: mas a pergunta é a mesma. A mesma pergunta tem sido feita em vários graus e maneiras, mas em suas formas inferiores não encontra solução, porque as histórias de maçãs, serpentes e mulheres não fornecem uma explicação. Nesses estágios a pergunta é infantil, e infantil é a resposta.
Mas a pergunta assumiu uma alta forma filosófica: "Como surgiu essa ilusão?" E a resposta é igualmente alta. A resposta é que não podemos esperar resposta alguma a uma pergunta impossível. A própria pergunta é autocontraditória. Não tendes o direito de fazer essa pergunta. Por que? Que é a perfeição? O que está para além do tempo, do espaço, da causação. Isso é perfeito. Então perguntais como o perfeito se tornou imperfeito. Na linguagem lógica, a pergunta pode ser colocada nos seguintes termos: "Como aconteceu que o que está para além da causalidade se tornou causado?" Vós vos contradizeis. Primeiro admitis que isso está para além da causalidade e depois indagais o que causa isso. Essa pergunta só pode ser respondida dentro dos limites da causalidade. É pergunta que pode ser feita até onde o tempo, o espaço e a causalidade se estendam. Mas, para além disso, seria tolice formulá-la, porque a pergunta seria ilógica. Dentro do tempo, do espaço e da causalidade, ela jamais pode ser respondida, e que resposta pode existir para além desses limites só pode ser sabido quando os transcendermos. Portanto, o prudente será deixar a pergunta em paz. Quando um homem está doente, a gente se dedica a curar-lhe a doença, sem insistir em que primeiro deve aprender como lhe aconteceu apanhá-la.
Há outra resposta que não fica assim em plano filosófico tão alto. Pode qualquer realidade produzir ilusão? Certamente não. Vemos que uma ilusão produz outra, e assim por diante. É sempre a ilusão que produz ilusão. É a doença que produz doença e não a saúde que produz doença. A onda é a mesma coisa que a água; o efeito é a causa sob outra forma. O efeito é ilusão, portanto, a causa deve ser ilusão. Que produziu essa ilusão? Outra ilusão. E assim vai, sem princípio. A única pergunta que vos resta fazer, é: "Não rompe nosso monismo o fato de termos duas existências no universo - uma o Eu, e a outra a ilusão?" A resposta é: "A ilusão não pode ser chamada uma existência. Milhares de sonhos entram em vossa vida, mas não formam qualquer parte de vossa vida. Os sonhos vêm e vão: não têm existência. Chamar existência à ilusão seria sofisma. Há, portanto, apenas uma Existência indivisível no universo, sempre livre e sempre abençoada, e é isso que sois". É essa a última conclusão a que chegaram os advaitistas. Podeis, então, indagar: "Que será de todas essas formas de culto?" Permanecerão. Estão apenas tateando nas trevas, em busca de luz, e através desse tateamento a luz virá.
Acabamos de ver que o Eu não pode ver a si próprio. Nosso conhecimento está dentro de uma teia de maya, de irrealidade, e além disso fica a libertação. Dentro da teia há escravidão e tudo está sob a lei. Para além não há lei. No que se refere ao universo, a existência é governada pela lei, e para além dele fica a liberdade. Enquanto estiverdes na teia do tempo, do espaço, da causalidade, dizer que sois livres é tolice, porque essa teia está sob lei rigorosa. Todos os pensamentos que tendes são causados, todos os sentimentos são causados, e dizer que a vontade é livre não passa de mera tolice. Só quando a Existência infinita vem, por assim dizer, para essa teia de maya, é que ela toma a forma de vontade. Vontade é uma porção daquele Ser, apanhada nas teias da maya; portanto, a vontade é um nome falso, uma denominação imprópria. Nada significa - simples tolice. Assim é todo esse falatório com respeito a liberdade. Não há liberdade em maya. Não há liberdade enquanto não fordes além de maya. Essa é a verdadeira liberdade da alma.
Os homens, por muito agudos e intelectuais que sejam, por mais claramente que vejam a força da lógica que diz nada poder ser livre aqui, sentem-se todos compelidos a pensar que são livres. Não o podem evitar. Não há trabalho que se possa realizar enquanto não começarmos a ver que somos livres. Isso significa que a liberdade de que falamos é um relance do céu azul para além das nuvens, e que a verdadeira liberdade - o próprio céu azul - está acolá. A verdadeira liberdade não pode existir em meio desta ilusão, desta alucinação, desta tolice do mundo, deste universo dos sentidos, do corpo e da mente. Todos esses sonhos sem princípio nem fim, descontrolados e incontroláveis, desajustados, rompidos, dissonantes, formam nossa idéia deste universo. Num sonho, quando vedes um gigante com vinte cabeças vos perseguindo, e estais fugindo dele, não achais que aquilo seja dissonante, achais que é apropriado e direito. Assim é esta lei. Tudo quanto chamais lei é uma simples oportunidade sem significação. Neste sonho em que estais, chamais a isso lei. Dentro de maya, enquanto existir essa lei de tempo, espaço e causalidade, não haverá liberdade, e todas essas várias formas de culto estão dentro dessa maya. A idéia de Deus e as idéias do bruto e do homem estão dentro dessa maya, e, como tais, são igualmente alucinações. Todas elas são sonhos.
Mas deveis ter o cuidado de não argumentar tal qual alguns homens extraordinários de que ouvimos falar no tempo presente. Dizem que a idéia de Deus é ilusão porém que a idéia deste mundo é verdadeira. Ambas as idéias resistem ou tombam pela mesma lógica. Só ele tem o direito de ser um ateu que nega este mundo, tanto quanto o outro. O mesmo argumento aplica-se a ambos. A mesma massa de ilusão estende-se de Deus até o animal mais insignificante, de um fio de capim ao Criador. Resistem ou caem pela mesma lógica. A mesma pessoa que vê falsidade na idéia de Deus deve vê-la também na idéia de seu próprio corpo e sua própria mente. Quando Deus se desvanece, então se desvanecem também o corpo e a mente, e quando ambos se desvanecem, o que é a Existência real permanece para sempre. "Ali os olhos não podem ir, nem a fala, nem a mente. Não podemos vê-la, nem conhecê-la." E compreendemos agora que até onde podem ir a fala, o pensamento, o conhecimento e o intelecto, tudo fica dentro de maya, dentro da prisão. Para além dela está a Realidade. Ali não chegam a mente, e a fala. Até aqui isso está certo, intelectualmente, mas é preciso que venha a prática. É necessária alguma prática para compreender essa Unidade? Positivamente, sim. Não quer dizer que ireis tornar-vos aquele brâmane, já o sois. Não quer dizer que ides tornar-vos Deus ou ser perfeito: já sois perfeitos, e sempre que Pensais não o ser será uma ilusão. Essa ilusão que diz serdes vós o Sr. ou a Sra. Fulano de Tal pode desaparecer através de outra ilusão. O fogo engolirá o fogo, e podeis usar uma ilusão para dominar outra ilusão. Uma nuvem virá e afastará para longe outra nuvem, e depois ambas irão embora.
Que são essas práticas, então? Devemos sempre ter em mente que não iremos ser livres, mas já somos livres. Toda a idéia de que somos prisioneiros é ilusão. Toda a idéia de que somos felizes ou infelizes é uma tremenda ilusão, e outra ilusão virá, a que temos de trabalhar e cultuar e lutar, para sermos livres. Esta expulsará a primeira ilusão, depois ambas terão terminado.
A raposa é considerada muito ímpia pelos maometanos e hindus. Também, se um cão toca em qualquer pedaço de alimento, este deve ser atirado fora e não pode ser comido por nenhum ser humano. Numa certa casa maometana, uma raposa entrou apanhou um, bocadinho do alimento que estava sobre a mesa, comeu-o e fugiu. O homem era pobre e tinha preparado um banquete muito bom para si próprio, e o
banquete se tornara ímpio e ele não poderia comê-lo. Assim, foi ter com um muilab, um sacerdote, e disse-lhe:
- Aconteceu-me o seguinte: uma raposa entrou e apanhou um bocado da minha comida. Que posso fazer? Eu tinha preparado um banquete e desejava muito comê-lo, e agora vem essa raposa e destrói tudo!"
O mullah pensou por um minuto e então encontrou a única solução, dizendo: "A única maneira é arranjares um cão e fazê-lo comer um bocado do mesmo prato, porque cães e raposas estão sempre em disputa. A comida que foi deixada pela raposa irá ter ao teu estômago, e também a que for deixada pelo cão, pois cada impureza anulará ,a outra".
Estamos mais ou menos na mesma situação. Dizer que somos imperfeitos é uma alucinação, e tomaremos outra, que diz termos de praticar para nos tornarmos perfeitos. Então uma anulará a outra, como podemos usar um espinho para extrair outro e depois atirar ambos fora. Há pessoas para as quais é suficiente como conhecimento o fato de ouvirem: "Tu és isto". Num relance este universo desaparece e a natureza real resplandece. Mas outras têm de lutar duramente para se livrarem da idéia de aprisionamento.
A primeira pergunta é: "Quem está em condições de ser jnana-yogue?" Os que estão equipados com estes requisitos:
Primeiro, renúncia a todos os frutos do trabalho e a todos os gozos desta ou de outra vida. Se sois o Criador do universo, tereis o que desejardes, porque criareis para vós mesmos o que desejardes, é apenas uma questão de tempo. Alguns conseguem imediatamente, outros têm os samskaras, impressões passadas, a erguerem-se no caminho de seus desejos. Damos o primeiro lugar ao desejo de prazeres, nesta ou em outra vida. Negais que exista uma vida qualquer, porque a vida é apenas o outro nome da morte. Negais que sois um ser vivo. Quem se importa com a vida? A vida é uma dessas alucinações, e a morte é a sua réplica. A alegria é uma parte dessas alucinações, e a angústia outra parte, e assim por diante. Que tendes vós com a vida ou com a morte? Tudo isso não passa de criações da mente. A isso se chama abandonar os desejos de prazeres, nesta ou em outra vida.
Depois vem o controle da mente, acalmando-a de tal maneira que ela não se desfaça em ondas e tenha toda a sorte de desejos. Manter a mente firme, sem permitir que ela vacile através de causas externas ou
internas, controlar a mente perfeitamente, apenas pelo poder da vontade. O jnane-yogue não recebe qualquer auxílio interno ou externo. Os instrumentos em que acredita são o raciocínio filosófico, o conhecimento, e sua própria vontade.
Depois vem titiksha, paciência, suportando todas as angústias sem murmurar, sem se queixar. Quando um agravo vier, não se importar; se um tigre avançar, ficar ali. Há homens que praticam titiksha e têm sucesso. Há homens que dormem nas margens do Ganges em pleno verão da Índia e no inverno bóiam sobre as águas do Ganges o dia inteiro: não se importam. Homens sentam-se na neve dos Himalaias e não se importam de usar roupa alguma. Que é o calor? Que é o frio? Que as coisas venham e vão, que diferença isso me faz? Eu não sou o corpo. É difícil compreender isso, em países ocidentais, mas é bom saber que isso é feito. Assim como vosso povo é corajoso bastante para saltar à boca de um canhão no meio de um campo de batalha, nosso povo é corajoso bastante para pensar e agir de acordo com a sua filosofia. Dá sua vida por isso "Sou Existência-Conhecimento-Bem-aventurança Absoluta. Eu sou Ele. Eu sou Ele." Assim como o ideal ocidental é manter o luxo na vida prática, assim o nosso é manter a mais alta forma de espiritualidade, a fim de demonstrar que a religião não é apenas palavras inconsistentes, mas pode ser levada avante, em todos os pontos, nesta vida. Isso é titiksha, suportar tudo, não se queixar de nada. Eu mesmo tenho visto homens que dizem: "Eu sou a Alma. Que vem a ser o universo para mim? Nem prazer nem dor, nem virtude nem vício, nem calor nem frio. Nada é para mim". Isso é titiksha - não correr atrás dos prazeres do corpo.
Que é religião? Rezar: "Dá-me isto e aquilo!" Idéias loucas sobre religião! Os que acreditam nelas não têm uma verdadeira idéia sobre Deus e a alma. Meu Mestre (6) costumava dizer que o abutre voa alto, cada vez mais alto, até se tornar um simples ponto, mas seus olhos estão sempre no pedaço de carniça que ficou na terra. Afinal, qual é o resultado de vossas idéias sobre religião? Limpar as ruas e ter mais pão e roupas? Quem se importa com pão e roupas? Milhões chegam e vão a cada minuto. Quem se importa? Por que fazer questão das alegrias e vicissitudes deste pequeno mundo? Ide para além dele, se ousais. Ide para além da lei, deixai todo o universo desvanecer-se, e ficai sozinhos. "Eu sou Existência-Absoluta, Conhecimento-Absoluto, Bem-aventurança-Absoluta. Eu sou Ele, Eu sou- Ele."
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(5) Karma: Palavra sânscrita que significa "ação" e designa a lei de causa e efeito, chamada também de retribuição ou compensação.
(6) Meu Mestre: Ramakrishna, insigne instrutor religioso do último têrço do século XIX, fundador de uma escola a que hoje pertencem muitos hindus de posição social. Nasceu no dia 2O de fevereiro, em Kamarpukur, Bengala, na casta brimane, e morreu em março de 1886. Ver "O Evangelho de Ramakrishna", da Editora Pensamento.
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Quarta parte
O jnane diz: A mente não existe, nem o corpo. Sua meditação, portanto, é a mais difícil, a negativa. Ele nega tudo, e o que fica é o Eu. O jnane deseja arrancar o universo do Eu pela mera força da análise. O jnane procura arrancar-se ao seu aprisionamento da matéria pela força da convicção intelectual. Este é o caminho negativo - o neti, neti - "isto não, isto não".
A felicidade está no corpo, na mente ou no Atman. Nos animais, e nos seres humanos inferiores, a felicidade está toda no corpo. Homem algum pode comer com a mesma satisfação com que come um cão ou um lobo esfaimados; portanto, no cão e no lobo a felicidade está inteiramente no corpo. Nos homens encontramos um plano mais alto de felicidade, o do pensamento. E no inane há o mais alto plano de felicidade, no Eu, o Atman. Assim, para o filósofo, esse conhecimento do Eu é da maior utilidade, porque lhe dá a mais alta felicidade possível. Satisfação dos sentidos ou coisas físicas não podem ser da mais alta utilidade para ele, porque não encontra neles o mesmo prazer que encontra no conhecimento de si mesmo. E, afinal, o conhecimento é a única meta, e é, realmente, a maior felicidade que conhecemos. Todas as pessoas que trabalham, e lutam, e se esforçam como se fossem máquinas, não gozam realmente a vida, mas quem a goza é o homem instruído. Um ricaço compra um quadro, mas o homem que entende de pintura é quem o goza. E se
o ricaço não tem conhecimento de arte, o quadro é inútil para ele. Torna-se o possuidor, apenas. Por todo o mundo, é o homem instruído quem goza a felicidade desse mundo. O ignorante nunca tem prazer. Precisa trabalhar para os outros, inconscientemente.
Não há senão um Atman: não pode haver dois. Vimos como em todo o universo há apenas uma Existência, e essa única Existência, quando vista através dos sentidos, é chamada mundo, o mundo da matéria. Quando é vista através da mente, é chamada mundo dos pensamentos e idéias. E quando é vista como é, então é o único Ser infinito. Deveis manter em vossas mentes o seguinte: não é que exista uma alma no homem, embora eu tivesse de aceitar isso, de início, como fora de dúvida, a fim de poder explicar. Mas há apenas uma Existência, e essa Existência é o Atman, o Eu. Quando isso é percebido através dos sentidos, através de imagens dos sentidos, é chamado corpo. Quando é percebido através do pensamento, é chamado mente. Quando é percebido através de sua própria natureza, é chamado o Atman, a única Existência.
Portanto, não existem três coisas numa só - o corpo, a mente, e o Eu, embora esse fosse um caminho conveniente para o curso da explicação. Mas tudo isso é Atman, e esse Ser único é às vezes chamado corpo, às vezes mente, e às vezes Eu, segundo os diferentes pontos de vista. Não há senão um único Ser, que os ignorantes chamam mundo. Dualismo e não-dualismo são expressões filosóficas muito boas, mas, em percepção perfeita, jamais vislumbramos o Real e o falso ao mesmo tempo. Todos nascemos monistas, não o pode-mos evitar.
Sempre vislumbramos um. Suponhamos que vedes um de vossos amigos vindo em vossa direção, na rua, a uma certa distância. Vós o conheceis muito bem, mas, através da obscuridade do nevoeiro que tendes pela frente, pensais que se trata de um outro homem. Quando vedes vosso amigo como um outro homem, não vedes mais o vosso amigo, ele se desvaneceu. Estais vislumbrando apenas um. Suponhamos que o vosso amigo seja o Sr. A, mas quando vislumbrais o Sr. A como Sr., não vedes absolutamente o Sr. A. Em cada um dos casos vedes apenas um. Quando vos vedes como um corpo, sois corpo e nada mais, e esta é a percepção da vasta maioria da humanidade. Podem falar de alma, da mente, e de todas essas coisas, mas o que percebem é a forma física - tacto, paladar, visão, e assim por diante.
Entretanto, certos homens, em determinados estados de consciência, percebem-se como pensamento. Sabeis, naturalmente, a história de Sir Humphry Davy, que estava fazendo experiências diante de sua classe, com gás hilariante. Subitamente, um dos tubos se rompeu e o gás escapou, levando-o a respirá-lo. Por alguns momentos ele se manteve como uma estátua. Depois disse aos alunos que enquanto se sentiu naquele estado, percebera, realmente, que todo o mundo é feito de idéias. O gás, por algum tempo, levou-o a olvidar a consciência do corpo, e mesmo aquilo que ele estava vendo como corpo, começou a vislumbrar como idéias.
Quando a consciência se erguer ainda mais alto, quando esta pequena, insignificante consciência tiver desaparecido para sempre, o que é Realidade por trás dela, brilhará, e nós a veremos como a única Existência-Conhecimento-Bem-aventurança, o único Atman, o Universal. "Um que é o próprio Conhecimento único, um que é a própria Bem-aventurança, para além de toda a comparação, para além de todo o limite, sempre livre, jamais aprisionado, infinito como o céu, imutável como o céu: tal como se manifestará em vosso coração, na meditação."
Como explica o advaitista as várias teorias de céus e infernos e essas várias idéias que encontramos em
todas as religiões? Quando um homem morre, diz-se que vai para o céu ou para o inferno, para aqui ou
para ali, ou que quando um homem morre, torna a nascer em outro corpo, seja no céu ou em outro mundo,
algures.
Tudo isso não passa de alucinações. Falando com realismo, ninguém nasce nem morre. Não há céu, nem inferno, nem este mundo: todos os três realmente jamais existiram. Contai a uma criança uma porção de histórias de fantasmas, e fazei-a sair à rua, pela noite. Existe ali um pequeno toco de árvore. Que vê a criança? Um fantasma, com as mãos estendidas, pronto para agarrá-la. Suponhamos que um homem vire a esquina, desejando encontrar sua namorada: vê naquele toco de árvore uma jovem. Um policial que venha da mesma esquina vê o toco transformado em ladrão. O ladrão o vê como um policial. Trata-se do mesmo toco de árvore, que foi visto de várias maneiras. O toco é a realidade, e as visões do toco são as projeções das várias mentes.
Há um Ser, um Eu, que nunca vem nem vai. Quando um homem é ignorante, deseja ir para o céu, ou para um lugar parecido. Durante toda a sua vida pensou e tornou a pensar nisso, e quando esse sonho terreno se desvanece, vê este mundo como um céu com anjos voando sobre ele. Se um homem deseja toda a sua vida encontrar-se com os seus antepassados, consegue encontrá-los, a partir de Adão, pois cria todos eles. Se um homem é ainda mais ignorante e está sempre assustado pelos fanáticos com idéias de inferno, com toda a sorte de castigos quando ele morrer, verá este mesmo mundo como um inferno. Tudo o que significa isso de nascer ou morrer é simplesmente um caso de mudanças no plano da visão. Nem vós vos moveis nem se move aquilo sobre o que projetais vossa visão. Sois os permanentes, os imutáveis. Como podeis ir e vir? Isso é impossível: sois onipresentes.
Estais onde estais. Esses sonhos, essas várias nuvens, movem--se. Um sonho segue-se ao outro, sem conexão. Não há lei de conexão neste mundo, mas pensamos que há uma grande quantidade de conexão. Todos vós lestes, provavelmente, Alice no País das Maravilhas (7), o mais maravilhoso livro infantil que foi escrito neste século. Quando eu o li, fiquei encantado, pois sempre tive a intenção de escrever um livro assim para as crianças.
O que mais me agradou nele foi o que julgais ser o mais incongruente, pois ali não há conexão. Uma idéia vem e salta sobre a outra, sem qualquer conexão. Quando fostes crianças, julgastes ser aquela a mais maravilhosa conexão. Assim, aquele homem tornou a apossar-se dos pensamentos de sua infância, que eram perfeitamente conexos, então, para ele, e compôs aquele livro infantil. E todos esses livros que os homens escrevem, tentando fazer as crianças engolirem suas próprias idéias de adultos, são tolices. Todos nós somos crianças crescidas, eis tudo. O mundo é a mesma coisa desconexa -- Alice no País das Maravilhas - sem qualquer conexão.
Como? Essa é a pergunta seguinte. Como podemos compreender isso? Como podemos romper este sonho, como acordaremos deste sonho que nos diz sermos pequeninos homens, pequeninas mulheres, e todas essas coisas?
Tal escravização tem de ser rompida. Como? "Esse Atman primeiro tem de ser ouvido, depois raciocinado, e depois meditado". Esse é o método do advaita jnane. A verdade tem de ser ouvida, depois se reflete sobre ela, e daí por diante precisa ser constantemente afirmada. Pensai sempre: "Eu sou Brama." (8) Nunca digais: "Ó Senhor, sou um miserável pecador!" Quem vos ajudará? Sois o auxílio do universo. Que, neste universo, pode ser de auxílio para vós? Onde está o homem, o deus, ou o demônio que vos ajude? Que pode prevalecer sobre vós? Sois o Deus do universo. Onde podereis encontrar auxílio? jamais o auxílio veio de parte alguma a não ser de vós mesmos. Em vossa ignorância, cada prece foi respondida por algum Ser, mas vós mesmos, sem o saber, respondestes à prece. O auxílio veio de vós mesmos, e vós tivestes satisfação em imaginar que certo Alguém vos estava mandando auxílio. Não há auxílio para vós fora de vós mesmos: sois o Criador do universo. Como o bicho-da-seda, tecestes um casulo em torno de vós. Quem vos salvará? Rompei vosso casulo e saia dele como a bela borboleta, como alma liberta. Então, só então, vereis a Verdade. Dizei sempre convosco mesmos: "Eu sou Ele". Essas são palavras que queimarão as escórias da mente, palavras que farão surgir as tremendas energias que já estão dentro de vós, o poder infinito que dorme em vossos corações. Tais coisas devem surgir através da verdade constantemente ouvida, e de nada mais. Donde houver pensamentos de fraqueza, não vos aproximeis. Evitai toda a fraqueza, se quiserdes ser um jnane.
Antes de começar a prática, limpai vossas mentes de todas as dúvidas. Lutai, raciocinai, argumentai, e quando tiverdes estabelecido em vossa mente que isso, apenas isso, pode ser a verdade, e nada mais, cessai de discutir. Fechai vossa boca. Não ouçais argumentos, nem argumenteis. Que adiantam mais argumentos? Estais satisfeitos, decidistes a questão. Que permanece, ainda? A verdade tem de ser compreendida. Portanto, por que perder tempo valioso em argumentos? A verdade agora tem de ser meditada, e cada idéia que vos dá forças deve ser aceita, e cada pensamento que vos enfraquece deve ser
rejeitado.
O jnane diz: a mente não existe, o corpo não existe. Essa idéia de corpo e mente deve ir embora, deve ser expulsa, portanto é loucura pensar neles. Seria como tentar curar um mal pela aplicação de outro. Sua meditação é portanto a mais difícil, porque é a negativa: ele nega tudo, e o que fica é o Eu. Essa é a maneira mais analítica. O jnane deseja arrancar o universo do Eu pela pura força da análise. É muito fácil dizer: "Eu sou um jnane". Mas é muito difícil ser, realmente, um jnane. O caminho é longo; é, por assim dizer, como caminhar sobre o fio de uma navalha, e ainda assim não se desesperar. "Acordai levantai-vos, e não pareis até que tenhais atingido à meta." Assim dizem os Vedas.
Portanto, que vem a ser a meditação para o que Ele deseja erguer-se acima de qualquer idéia de corpo ou mente, expulsar a idéia de que ele é o corpo. Por exemplo, quando eu digo: "Eu, Swamí", vem, imediatamente a idéia de corpo. Que devo fazer, então? Devo dar uma forte pancada à minha mente, e dizer: "Não, não sou o corpo, sou o Eu." Que importa venham a doença ou a morte numa forma das mais horríveis? Eu não sou o corpo. Por que fazer bonito o corpo? Para gozar a ilusão uma vez mais? Para continuar a escravização? Que ela se vá. Não sou o corpo. Esse é o caminho do jnane.
O jnane sente que não pode esperar, que deve alcançar a meta agora mesmo. E diz: "Sou livre através da eternidade, jamais estou preso. Sou o Deus do universo através de toda a eternidade. Quem poderá fazerme perfeito? Eu já sou perfeito..."
Quando um homem é perfeito, vê perfeição nos outros. Quando vê imperfeições, é a sua própria mente que se projeta Como pode ver imperfeições se não as tem em si mesmo? Assim, o inane não faz caso da perfeição, Não existe qualquer perfeição para ele. Assim que se liberta, não vê o bem nem o mal. Quem vê o mal ou o bem? Quem os tem em si próprio. Quem vê o corpo? Quem pensa que é o corpo. No momento em que vos libertais da idéia de que sois o corpo, não vedes absolutamente o mundo. Ele se desvanece para sempre. O jnano procura arrancar--se dessa prisão de matéria pela força da convicção intelectual. Essa é a forma negativa - o neti, neti - "isto não, isto não".
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(7) Alice no País das Maravilhas - Famoso livro infantil, escrito em 1885 pelo escritor inglês Lewis Carroli, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson. (1832-1898)
(8) Brama: - A Primeira pessoa da Trindade Védica, aná-loga ao Pai da Trindade Cristã.
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